Foto do(a) blog

Crônica, política e derivações

A extinção

PUBLICIDADE

Por Paulo Rosenbaum
Atualização:

A última a falar no Congresso, Yelena Simieva, afirmou que já fazia quase 70 anos que um deles havia sido avistado em ambiente doméstico, portanto mais de uma geração separava a data da inauguração do Museu, do período da grande extinção.

PUBLICIDADE

-- As vezes é muito natural que todas nós nos perguntemos: e se eles ainda estivessem por aqui? O que seria do mundo? Como seriam nossas vidas?

Yelena ouviu vaias ao fundo, fez uma pausa rápida, para, em seguida, dar continuidade à palestra

-- Talvez vocês não entendam, mas não faz tanto tempo assim, minha bisavó, imagine, minha bisavó, chegou a ter um em casa. Na época era normal.

As vaias diminuem.

Publicidade

--Eu sei, sei perfeitamente, hoje temos consciência do quanto eles são desnecessários, mas parece que nem todas eram infelizes com eles por perto. Em nossos dias fica bastante claro que depois que desapareceram, o mundo ficou melhor. As guerras estancaram, a violência e a desigualdade diminuíram, ninguém mais precisa suportar desmandos ou ideias dogmáticas fora das Universidades, barbas que espetam, arrogância cabotina, topetes loiros, cavanhaques ridículos, maus hábitos e convenhamos, os banheiros agora são definitivamente lugares limpos. Tanto os acervos fotográficos como todas as evidencias coletadas mostram que todos nasciam com deficiências genéticas de higiene e especula-se, um invencível complexo de superioridade.

Os aplausos começaram a dividir o fundo da sala de conferencias.

-- Foi a história natural, e não nós, quem decidiu que eles já tinham cumprido seu ciclo. Quando os casos de autofecundação começaram a surgir e vingar no mundo todo, os cientistas honestos já previam, só poderia haver um desfecho. Os papers estampavam "quando some a função, o futuro é a extinção".  Escreveram que 50 anos bastavam para que tudo estivesse consumado, foram necessários quase 100.

Aplausos se intensificam

--Vamos recordar a sequencia dos fatos. Nosso gênero conquistou cargos políticos. Passamos a ocupar o núcleo do poder. Em menos de 40 anos tornamo-nos hegemônicas. No início, reagiram com elegância. Diziam-se constrangidos pelos milênios de opressão. Depois, ficaram incrédulos com nossa eficácia na gestão do mundo. Claro que parecia inverossímil, mas me mostrem pelo um dos dinossauros que esperava pelo fim? Trouxe alguns dos jornais daquele período para que vocês todas reflitam. Vejam, por exemplo, esta manchete de março de 2032:

Publicidade

"Os machos agonizam, merecem a extinção?".

E leiam essa outra, projetada ai no telão

"O masculino em vias de desaparecer?"

Aplausos seguido de gargalhadas. Yelena pede calma.

-- Mas foi só quando, inexplicavelmente, os alfa começaram a ficar inférteis que tudo piorou. O golpe mortal foi no orgulho. Reagiram mal e nos ameaçaram com boicotes e sanções. Foi quando passamos a gerar sozinhas, dispensando todo seu provimento e patrimônio genético. Os biólogos logo constataram: somente fêmeas eram viáveis. O que nunca souberam é que nós jamais desejávamos isso, nem mesmo fizemos força para que entrassem em extinção.  Eu confesso, em caráter pessoal, alguma curiosidade em saber como seria ter um exemplar em casa em nossos dias.

Publicidade

Murmúrios azedos.

--Já imaginaram? Como seria dividir com eles a criação das famílias? Mesmo porque, pelo que tudo indica, parece que esse não era bem o forte deles. Amigas, nós nunca quisemos fundar aquilo que foi designado muito recentemente como "Feministão". Natureza e evolução fizeram seu trabalho, e, depois de milhões de anos escolheu quem deveria sumir para dar lugar ao gênero que poderia viver para fazer o planeta sobreviver.  Como bem definiu Aristóteles "a natureza faz, não faz nada em vão, só faz, sem instrução,  aquilo que é necessário". Vamos aceitar este presente e louvar nossa emancipação, sem culpa ou remorso.

-- Ao mesmo tempo, é com orgulho que inauguramos nesta data, o Museu do Gênero Desaparecido, que abriga o maior acervo iconográfico, espécimes reais embalsamadas, e uma curadoria especial com os objetos de culto. Só não conseguimos espaço para coleções de álbuns de futebol com figuras carimbadas  da Copa e os carrões potentes. O intuito é mostrar que reconhecemos o quanto eles foram importantes em etapas prévias da humanidade. Sabendo que o tempo não desfaz seus erros nada mais justo prestar esse tributo aos saudosos machos, nossos parentes extintos, e reafirmar como somos reconhecidas por tudo que fizeram.

Yelena termina ovacionada, desce as escadas do palanque agradecendo o entusiasmo com as mãos.

Ao chegar ao camarim, disfarça a nostalgia. "A mãe natureza pode até fazer o que é necessário, alguém precisa avisa-la que não estamos obrigadas a aplaudir"

Publicidade

Certificando-se que a porta está trancada, retira o porta retrato, aproxima-o e chora. Em seguida aperta a fotografia contra o peito.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.