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Crônica, política e derivações

Devoradores de sentido

Por Paulo Rosenbaum
Atualização:
 Foto: Estadão

As vezes, é chegada a hora de admitir: temos que abandonar a busca de saídas. É que saídas são onerosas. Saídas são desgastantes. Já tivemos a quota de saídas heroicas, missionárias, messiânicas e totalizantes. Nada imobiliza mais do que tudo ou nada. Isso porque é mais provável que uma quimera anteceda uma solução. A democracia, assim como outros conceitos sofisticados apresenta couro grosso com telhado de cristal. Uma exigência mínima é que um governo assuma o ônus de governar. Sem isso, vivemos a corte grotesca com aval para desgostos. Há tanto para menear a cabeça e recusar que talvez nem seja mais o caso de acusar ou acumular ressentimentos.

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Se é impossível colocar o senso comum no pódio é mais difícil que a filosofia dos neuroexperts deem conta da complexidade. Ela desconcerta. Vibra em cadeia. Bate na testa. Comanda um exército de erros de previsões. Desbanca os oráculos.  Quebra a banca. Muda o tempo e desorienta para nos humilhar com suas inconstâncias e extravagâncias. O mundo tem menos guerras? Mata menos? A civilização avança? Para alivio de Freud o ancião mal estar na cultura, vem sendo, enfim, superado? Engraçado. Não é a sensação. As estatísticas precisam ouvir mais o sentido que os números. Da violência sectária do Oriente Médio, às incursões separatistas na Europa, dos flagelos contra a natureza às demandas crescentes de consumo, ficamos devendo. Eis que legiões de intelectuais validam o inescrupuloso. Estudantes de medicina, mimetizam, eles também, o exato oposto do cuidado. E o anti-cuidado não é só não cuidar, mas abuso, retrocesso, tortura e discurso justificacionista como técnicas de domínio.

Não faz sentido. Somos devedores de sentido. Nos tornamos devoradores de sentido. Não alcançamos mais sentido nos pequenos sentidos diários. Desprezamos um Montaigne por dia negando o seu "não te basta viver?". Abominamos um Camus por semana, pois, de fato, o que significa ser feliz em meio à infelicidade coletiva? E quem no mundo de hoje autoriza digressões? Podemos nos dar ao luxo? Destas e de outras reflexões? Quando se percebe como cresce o húmus: totalitarismos, extremismos e califados. Nossas lágrimas são ladrões da dor. Vermelhas de intolerância.De rubras, foram às cinzas. Estamos, sem tirar nem por, no viés do mundo. Num interregno das passagens. Suspensos, não temos mais eixos e desandamos.

Agora nem se pode despejar mais nada nas costas das contradições do capitalismo. Trata-se de algo bem mais ordinário, em sua mais binária acepção. A esperança remanescente está na jactância do comum, no refluxo à vida privada, no calor de uma pequena infinitesimalidade de medida pessoal. Olhar e ver. Emprestar vozes. Somar pingos à tempestade. E ousar ser. Contra todas as revogações em contrário. Intensificar a ousadia quando te dizem que é perigoso. Quando a maioria já se rendeu. Manifestar-se quando todos já murcharam em suas rotinas. Esqueça quem só procura. Quem acha é quem tem a presunção do acerto, da vida não fracassada e da participação justa. E a honra de ter encontrado o que nunca imaginaria? Ninguém pode pedir que esqueçamos do mal feito, a crueldade, os perversos, e a violência ruidosa, mas vale recomendar: que não sejam tomados como a medida de todas as coisas.Aliás, de coisa nenhuma. Em desuso, a paz é o único ingrediente que neutraliza todos os outros.

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