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Crônica, política e derivações

O mínimo que nos une.

Por Paulo Rosenbaum
Atualização:

O mínimo que nos une

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Eu poderia me afundar na neutralidade. Há anos faço isso. Não gosto de concentração, de aglomeração e tenho surtos de claustrofobia., Mas hoje não. Hoje um sentido de agrupamento me invadiu sem dar aviso. Caminhei quase automaticamente. Cheguei ao núcleo e lá me vi cercado de pessoas com as quais não tinha afinidades. Meu esforço era buscar qualquer identidade, parecia impossível. Continuei andando. O palco era o mesmo, o asfalto tenso com pedidos dispares, sem foco. Mas havia uma, comum à maioria. Queriam mudar. Exigiam o fim do pesadelo. Foi quando ergui o celular para captar a multidão que levei um cutucão. Era Irma, a amiga perdida, uma das melhores, que me bloqueou lá atrás, quando os escândalos começaram. Todo mundo sabe, os contatos nas redes sociais são voláteis. Com Irma era diferente, uma amiga de infância. 26 anos de contato interrompidos pela estranha devoção ao partido.

--Você, aqui? Enfatizei meu espanto.

-- Só vim dar uma olhada.

-- E o que me diz?

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--É a direita, sempre a direita.

-- Vamos começar de novo?

-- Não, é só você admitir

-- Admitir o que?

-- Que traiu a causa.

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-- Minha causa é a sua causa, e de toda essa gente.

-- A minha não! Ela limpou a boca.

-- Qual é a sua?

-- Você está careca de saber. Justiça social, decência, o fim de toda essa bagunça

-- Irma, é o que quase todos querem. Dá uma parada, sinta a realidade.

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Ela olha em volta e retorna um olhar negativo

-- Bando de burgueses!

-- Posso dizer bando de cidadãos!

-- Não acredito, esqueceu das aulas?

-- Fui além. Também fiz questão de desaprender livros

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-- Bem que me falaram, você cedeu: virou um deles.

-- "Um deles"? Somos todos "um deles"

-- Nada. Eu não! Ela ameaçou se afastar.

-- Amiga, demorou, mas percebi: eles não eram republicanos. Não finja não ver o jogo que eles fingem não jogar.

-- Aff. Não embarco nessa.

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-- É fácil, tirei os óculos e ajustei a lente.

-- Ok. O que me diz de todos os intelectuais? A maioria fechou com o governo.

-- Não é mais unanimidade e você sabe tão bem quanto eu que eles nunca tiveram bom gosto.

-- Gosto? Por favor...

-- Faz o seguinte, que tal confiar mais na experiência do que na sua inteligência?

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-- Não dá, eu ainda tinha um fiapo de esperança

-- Tenha. Olha isso! E apontei para todos ali.

-- Estou vendo e isso só reforça o que eu já tinha concluído.

-- O que Irma?

-- Que somos incompatíveis.

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-- E o que faremos?

-- Cada um fica na sua.

-- Abandonar o ideal e ficarmos com o mínimo que nos une?

Ela deu de ombros e foi se afastando, mas deu tempo para gritar

-- Tem certeza?

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Ela só virou o pescoço e usou a mão em concha para falar de volta

-- Vou te desbloquear.

E foi desaparecendo, acenando de costas um longo tchau.

Me afastei da multidão para analisar a conversa. Desbloquear pode ter sido um sinal. Sinal de uma união possível e não ideal. De que o diálogo poderia voltar a fluir. De que uma democracia nunca é perfeita, comporta contrários e não anula ninguém. Que a incompatibilidade era uma espécie de cortina de fumaça de uma fogueira que nenhum de nós dois criou.

Me voltei em direção à gigantesca massa de gente e lá me entreguei ao êxtase. O êxtase do pertencimento.

 

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