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Crônica, política e derivações

Viagens alienantes

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Por Paulo Rosenbaum
Atualização:
 Foto: Estadão

Seria preciso lavar tudo. Busquei refugio no maior rio do mundo. Sai do Amazonas, desci o Madeira e, do nada, de uma folha circular, boiando, saiu a libélula em zigzag. Arrastada pelo vento, ficou paralela ao rio e as asas beliscaram as águas. Estranho foi ter sido fisgado pela melancolia. Algum sinal de morte ali? Mudei o ritmo do remo e quando enxerguei já estava do outro lado. Na margem esquerda. A Floresta é o último reduto de origem, não há nada mais inicial, primevo, vestigial.  Não há nenhum lugar que o homem não tenha pisado. A mata virgem é a exceção. Ali só há tempo incólume. Por que mesmo vim? Em um País no qual tudo virou policia e bandido, tribunais e cadeia, passear de canoa foi uma resposta à vida.  Viver, ou, dar sentido para o fim. Nenhum desespero é definitivo. Deixar o medo vingar é perder-se na vigência permanente. Mas, por favor, que ninguém tolha nossa hermenêutica. Reinterpretar o mundo milhares de vezes ao dia não é consolo, é salvação. A única remanescente. O Negro já tem igarapés coloridos. Graves e coloridos. Escolhidos a dedo pelo destino caudaloso. Então, virei à direita quando o riacho emborcou na mata. Mergulhei a cabeça na água. Era morna como o gelo tímido. Submergi as mãos e a pele saiu com a oleosidade de maré.  A maré doce dos afluentes. Fluido dos milênios, a água leve e dura se espalhou através do leito úmido das milhões de eras. Bilhões de florações. Aqui, números falam de outras cifras. Desci com a galocha ensopada e parei: estava diante do primeiro caule. O Paraíso, terá sumido?  Quando foi que o perdemos? Lembrei da prosa, da transiberiana, da sombra das sequoias americanas, das encostas secas dos desertos orientais, de povos sumidos, dos índios escondidos. Planícies de areia, outrora também, selvas. Outrora éramos todos selva. Muito antes das erosões. E todos erravam sem saber. Vagavam sem conhecer. Não sabiam o que já tinham, e desconheciam o pertencimento. Só tomamos noção do equilíbrio quando o perdemos. Também é assim com a liberdade.  Pensei nas jaulas e gaiolas. Nas trancas e nas travas. Imaginei os bilhões sem ar. Os cubículos daqueles que não podem mais sentir as imensidões.  Risquei o cobertor seco de folhagem úmida para ver terra. Preta. Negra como o rio Negro. Era tinta pura, degradada como o solo, que imanta nossos olhos.  Enxuguei a  testa que passou a exalar memórias. O caminho progredia sob meu remo enquanto tentava esquecer dos jornais, desassimilar livros, impedir que a flutuação dos mercados não me cegasse para os instantes dentro daqueles caules gigantescos. A civilização deve acordar só depois de estar alheia a tudo. Descobri a alienação, o perdão irrefletido, o desvio de todos os sistemáticos. Quem me dera obter a amnésia das análises, e descansar com as sínteses do instinto. Mas as imagens urbanas e quotidianas ainda me perseguiam. Nem percebi o calor, que transpirava de dentro. Tateei seringueiras maciças com suas seivas abandonadas. Vi a ferrugem das motosserras mutiladas. Remexi no artesanato jogado nos ribeirões, e, senti os talentos em potencia. Notei o barulho da respiração, abafado pelos grifos de pássaros, pássaros que agudos, injetavam seus perfis atravessando as nuvens. O Céu só é visível de cima, ou, do leito dos rios. As sombras seguiam em camadas sem assombrar as copas. Sem relógio ou bússola pensei em erguer ali, na hora, uma novíssima fundação. A humanidade de um só. A consciência compactada em um. Estacionei perto de um formigueiro suspenso. O aroma adocicado mudou o ar. A história só se desembrulha no desfecho. Sentei sem perceber que pequenos animais me rodeavam. Lembrei de gente que nunca mais voltou das expedições. Dos embrenhos sem retorno. Dos indícios de mateiros sem orientação. Dos sinais de galhos que cicatrizaram para confirmar que não há retorno. Soube que já não voltaria. E que, de agora em diante não vou torcer pelas regras, que o curso siga sua natureza e os campos se encharquem. Só assim a floresta sobreviverá para os habitantes. Pela penúltima vez olhei as margens: extraviar-se é a melhor forma de bendizer.

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