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A (in)constitucionalidade da urna eletrônica

A introdução da urna eletrônica no processo eleitoral teve dois tipos de consequências: de um lado, no plano prático, ela permite que as eleições sejam rapidamente apuradas, que seus custos sejam reduzidos, que não haja mais, como havia no tempo em que se utilizavam cédulas de papel, dúvidas acerca de um voto dado, de um nome ou número escrito na cédula ou, senão, de erros humanos involuntariamente cometidos na contagem manual. Aliviou, em suma, tanto o trabalho de todos os operadores diretamente envolvidos no processo eleitoral (p.ex., juízes, procuradores, cidadãos da comunidade) como a ânsia de quem deseja conhecer o resultado final do pleito dentro da maior brevidade possível.

Por Geraldo Miniuci
Atualização:

De outro lado, porém, essa sofisticação tecnológica que substitui a contagem manual pela eletrônica substitui também o modo de fiscalizar o procedimento eleitoral, limitando o acesso de quem não for especialista. No tempo em que se utilizava cédula de papel e a contagem de votos era manual, qualquer cidadão poderia observar e compreender uma apuração; hoje, no entanto, somente alguns cidadãos poderão fazê-lo, pois, sendo a contagem eletrônica e realizando-se ela no interior de uma máquina, apenas especialistas terão condições de avaliar se ocorreu ou não algum tipo de violação na transmissão de dados. Em outras palavras, houve a substituição de um controle que poderia ser realizado por qualquer pessoa por um controle que somente pode ser feito por especialistas e que obriga o leigo a pedir que alguém, o Estado ou alguma entidade privada, exerça, em seu lugar, um direito seu. Se, antes, havia transparência para qualquer indivíduo que acompanhasse as apurações, agora já não há mais.

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Por essa razão, em julgamento realizado no ano de 2009, a Corte Constitucional alemã considerou inconstitucional a utilização de urna eletrônica, argumentando que o sistema eletrônico impede que os eleitores exerçam um controle eficaz, pois uma parte essencial do procedimento, a contagem de votos, ocorre dentro de máquinas. Uma vez sanada a falta de transparência, porém, nada deveria impedir a utilização do equipamento.

A urna eletrônica combinada com voto impresso tem figurado entre as propostas para suprir essa lacuna. Em linhas gerais, esse tipo de urna funciona da seguinte maneira: o eleitor vota, uma impressora imprime o voto, o eleitor retira esse voto impresso da máquina, confere, dobra-o e deposita-o numa urna física. Com isso asseguram-se os dois tipos de contagem, a eletrônica e a manual, e a transparência necessária para garantir a constitucionalidade do procedimento.

No Brasil, a Lei 12.034/09 instituiu o voto impresso, adotando porém um outro tipo de esquema: nesse caso, depois de votar, o eleitor veria na tela a reprodução do voto dado, confirmaria a informação, uma cédula seria, em seguida, impressa e depositada automaticamente, sem contato manual, em local previamente lacrado. Esse voto receberia um número associado à assinatura digital da urna eletrônica, o que permitiria tão-somente saber que aquela cédula pertencia àquela urna. Ora, poderá um eleitor leigo ter certeza de que o voto depositado na urna lacrada é o voto que ele efetivamente deu? Ainda que se pudesse alegar que semelhante sistema não sanaria a falta de transparência, não foi por esse motivo que, em 2013, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou, por unanimidade, inconstitucional o dispositivo que introduziu essa modalidade de voto impresso no processo eleitoral brasileiro. Em vez de uma real falta de transparência, o principal argumento esgrimido contra a norma foi a possibilidade de violação do artigo 14 da constituição federal, que assegura o sigilo do voto. Isso porque entenderam a Procuradoria Geral da República (PGR), autora da ação, e os ministros do STF que o sistema implantado permitiria a identificação dos eleitores e de seus respectivos votos. Além disso, outras suposições e preocupações de natureza administrativa foram apresentadas como justificativa para declarar a inconstitucionalidade da norma: que o voto impresso seria um "foco de vulnerabilidades"; que "a introdução de impressoras potencializaria falhas e atrasaria o trabalho nas seções e zonas eleitorais do País"; que "a porta de conexão do módulo impressor abre-se a fraudes que podem comprometer a eficiência do processo eleitoral"; que haveria aumento de custos e demora na apuração e na divulgação dos resultados da eleição; que se houvesse falha na impressão ou travamento do papel da urna eletrônica, seria necessária a intervenção humana para solucionar o problema, e os votos registrados até então ficariam expostos à pessoa responsável pela manutenção do equipamento.

Em resumo, enquanto a corte constitucional alemã, diante da efetiva falta de transparência, sugeriu que a inconstitucionalidade da urna eletrônica poderia ser sanada com a introdução do voto impresso, o STF, diante da mera possibilidade de violação do artigo 14 da constituição, declara inconstitucional o mesmo voto impresso. No lugar da transparência, princípio fundamental da ordem democrática, o tribunal brasileiro opta pela confiança: a confiança nas auditorias, a confiança nos técnicos e na integridade técnica do sistema, a confiança nos responsáveis pela gestão da fiscalização, em suma, a confiança como a manifestada pela Ministra Relatora Carmen Lúcia, na época igualmente Ministra Presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE): a "auditoria não só pode como é feita. Mas, ao contrário do papel, ela fica em sistemas completamente inatacáveis por quem quer que seja".

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