Existem dois grandes tipos de intervenções em assuntos internos de um país: de um lado, aquelas em que um Estado estrangeiro se imiscui, por exemplo, na política interna do Estado nacional, tomando partido em eventuais disputas e procurando interferir no resultado de determinadas negociações. De outro lado, a intervenção é realizada não por um Estado estrangeiro, mas por organização internacional ou regional, nos termos do respectivo estatuto.
Numa ordem estatocêntrica, fortemente sedimentada no nacionalismo, a interferência do Estado estrangeiro nos assuntos internos do Estado nacional surge como anomalia, possível apenas quando houver uma combinação de lastro político com arrogância. Se, no entanto, a interferência for levada a cabo por uma entidade internacional, da qual faça parte o Estado nacional interessado, nesse caso a própria integridade da ordem estatocêntrica ficaria preservada, pois a possibilidade de intervenção realizada num Estado membro pela entidade a que ele pertence conta, em princípio, com seu prévio consentimento.
É preciso, contudo, notar que existem diversos modelos de organizações e possibilidades de intervenção. Para facilitar a compreensão, podemos imaginar um espectro de experiências organizacionais, em cujos extremos se encontram, de um lado, um sistema de integração regional altamente desenvolvido, com um poder judiciário independente, capaz de resolver definitivamente controvérsias entre os Estados partes, e, de outro lado, no extremo oposto, uma organização que ainda busca lançar as sementes de um projeto mais ambicioso de integração. Nesse caso, não existem autoridades judicantes independentes, e a solução de controvérsias fica a cargo dos próprios Estados, que decidirão não nos termos da lei, mas no de suas respectivas noções de interesse, conveniência e oportunidade.
Organizações que se aproximam desse segundo tipo podem apresentar déficit de legitimidade. No início deste mês, por exemplo, além do Brasil, 28 países do continente americano foram contrários à proposta de enviar observadores da Organização dos Estados Americanos (OEA) a Caracas. A instituição, no entanto, ao menos no contexto da presente crise, por incluir os Estados Unidos, não goza de legitimidade perante a Venezuela, cujo chanceler já manifestou que a situação de seu país deveria ser discutida no âmbito da União das Nações Sul-americanas (Unasul).
Organização dotada de personalidade jurídica internacional, a Unasul tem entre os seus objetivos específicos o fortalecimento do diálogo político entre os Estados partes, além de contar, a exemplo do que já ocorre no âmbito do Mercosul, com um protocolo adicional sobre compromisso com a democracia.
Não há, contudo, nenhum órgão judicante independente das partes, com poderes para solucionar controvérsias entre elas ou para apurar e julgar os casos de rompimento da ordem democrática. Tanto numa hipótese, como na outra, são políticas as decisões tomadas pelos demais integrantes da organização: no caso de desentendimentos relativos à interpretação ou à aplicação do tratado constitutivo, deverão ser tentadas em primeiro lugar as negociações diretas; se fracassarem, a controvérsia é submetida à consideração de conselho formado por representantes acreditados pelos Estados partes da Unasul, que formulará recomendações. Em caso de novo fracasso, a controvérsia será levada ao Conselho de Ministros das Relações Exteriores.
No caso de rompimento da ordem democrática, a matéria será decidida não por juízes, mas por chefes de Estado, de Governo ou chanceleres que, orientados por seus interesses e por suas noções de conveniência e oportunidade, avaliarão a situação e emitirão um julgamento inapelável no interior da entidade. Igualmente nesse caso, a Unasul, ao possibilitar que Estados façam julgamento político sobre situação de política interna de outro Estado, legaliza um tipo de intervenção a ser determinada não por uma autoridade julgadora supranacional, independente dos poderes executivos nacionais, mas por agentes desses executivos, permitindo que no interior da organização haja o mesmo tipo de ação política que havia no séc. XIX, isto é, que Estados, orientados menos por regras do que por interesses, atuem de forma concertada, emitam um julgamento sobre outro Estado e adotem contra ele medidas restritivas de direitos.
Em suma, diante da crise na Venezuela, há duas opções de ação: intervenção unilateral do país que dispuser de maior peso político, ou intervenção de uma instituição ainda refém do poder estatal.