Imaginem, agora, uma estátua de Hitler, no centro de Berlim. Ou que a Ebertplatz, em Colônia, voltasse a ser denominada Adolf-Hitler-Platz. Impensável, não é mesmo? Mas por que admitir, então, que uma pessoa como o general Lee, que lutou pela independência de um país escravocrata, na guerra civil norte-americana, seja homenageado e lembrado? Terá a escravidão sido menos nefasta do que o holocausto? Sem dúvida que o militar não foi responsável pela introdução do trabalho escravo, mas defendeu-o, ao lutar pela independência de um Estado que teria na supremacia racial um de seus fundamentos. Bateu-se por valores qualitativamente semelhantes aos de Hitler. Por que, então, seria justo render-lhe homenagens póstumas, transformando-o em estátua?
É sempre muito complicado estabelecer uma linha demarcatória entre o que pode ou o que não poder ser tolerado nesse nível. Se admito homenagens ao general Lee, porque não posso admiti-las a Hitler? Enquanto a guerra civil norte-americana chega a ser apresentada e representada com temperos românticos, o que condiz com a proliferação de símbolos relativos ao período, a representação simbólica do III Reich mantém viva não a memória do bravo soldado alemão, mas a das vítimas e das atrocidades que elas sofreram. Noutras palavras, as gerações que surgiram após a guerra-civil norte-americana mantiveram viva a memória confederada, enquanto as gerações que surgiram após a II Guerra Mundial colocaram o nazismo e mesmo a Alemanha e os alemães no banco dos réus da história.
Embora tenham perdido a guerra, os confederados não mudaram sua concepção de vida em relação aos negros, e o espaço da confederação derrotada tornou-se palco de hostilidades de toda sorte contra a população afro-americana, que passou a ser vítima de um terrorismo branco, do qual a Ku Klux Klan (KKK) é o melhor exemplo. Já a Alemanha foi estimulada, inicialmente pelas forças estrangeiras de ocupação, depois por suas próprias forças políticas internas, a rever seu passado: houve processo de desnazificação, julgamento de lideranças, punição de responsáveis e permanente esforço de manter viva a memória das vítimas. Em semelhante ambiente, não há muito espaço para exaltar soldados institucionalmente.
Mas, para além das instituições, no plano social, não somente a memória do general Lee, como também a de Hitler ou do nazismo são hoje evocadas por determinados grupos, formados por pessoas abertamente preconceituosas e violentas que, considerando-se superiores, não apenas se negam a reconhecer a dignidade dos que qualificam como seus inimigos (negros, judeus, muçulmanos, homossexuais), como sequer lhes toleram a existência. Num mundo onde se condena a violência do terrorismo, mas onde, ao mesmo tempo, a violência das guerras e revoluções é relembrada e glorificada, manter símbolos que são venerados por pessoas desse quilate significa um estímulo ao ódio e, portanto, à contradição de tolerar a intolerância.
A morte de pessoas em decorrência de disputas em torno de estátuas mostra que há algo de podre na alma humana que nenhuma educação, nenhum doutorado corrige e que leva a bizarrices como esses conflitos. Talvez um alívio para semelhante tensão passe por homenagear menos quem matou ou morreu, e mais quem resistiu pacificamente, quem aprimorou o conhecimento, quem inventou, enfim, quem, de algum forma, fez avançar as ciências, a economia, o direito, as artes e, por que não, a gastronomia. Em vez de membros de uma realeza escravocrata, generais comprometidos com ditadura militar ou soldados desconhecidos, que tal homenagear, por exemplo, os inventores desconhecidos da cerveja e do vinho? Ou, senão, a pessoa que criou a receita do pão-de-queijo, elevando-lhe um monumento nalgum lugar em Minas Gerais? Não haveria polêmica, nem seria semelhante obra objeto de adoração de lunáticos, mas apenas uma justa homenagem a quem inventou tão deliciosa iguaria.