O perigo da insignificância

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Por Geraldo Miniuci
Atualização:

Numa sociedade cuja constituição política tem como fundamento a dignidade humana, os princípios democráticos e o Estado de direito, seria lícito colocar na ilegalidade partido político que defenda a revogação desses pressupostos? E em que momento deveria ocorrer a decretação da ilegalidade: já no lançamento do programa partidário, por exemplo, ou somente quando essa agremiação representasse uma efetiva ameaça para a ordem social? Vejamos, a título de ilustração, o caso de um pequeno partido da extrema-direita alemã, o Nationaldemokratische Partei Deutschlands (Partido Nacional-Democrático da Alemanha), conhecido pela sigla NPD. Trata-se de agremiação cuja dissolução e proibição de funcionar foi pedida em ação promovida na corte constitucional alemã pelo Bundesrat, órgão que corresponde, no Brasil, ao Senado Federal. Embora tenha reconhecido que o NPD apresenta programa, ação e discurso políticos incompatíveis com a dignidade humana, com a democracia e com o Estado de direito, a corte considera o partido insignificante e, por ora, inofensivo para que seja dissolvido e colocado fora da lei. Ao contrário do que ocorrera em 1956, quando a então corte constitucional acolheu o pedido para dissolver o partido comunista alemão (KPD), dessa vez, em janeiro de 2017, o pleito para colocar um partido na ilegalidade foi indeferido. Nos tempos da guerra fria, a corte agiu preventivamente, proibindo a existência do KPD, ainda que ele fosse inofensivo. Preferiu-se a segurança. Nos tempos em que os nacionalismos e as tensões religiosas estão de volta, optou-se por tolerar a existência do NPD, um protagonista desse conflito, em vez de dissolvê-lo e de proibir-lhe o funcionamento. Preferiu-se a liberdade. Optar pela segurança ou pela liberdade significa optar entre correr o risco de tolher direitos fundamentais de alguém sem uma razão concreta, apenas preventivamente, ou, senão, de permitir que o partido insignificante e tosco de hoje conquiste legitimidade e se torne uma real ameaça, no futuro, quando então terá ampliado seu auditório de militantes, simpatizantes e eleitores. Se, com medo de que a história se repita e de que venhamos a testemunhar a ascensão de fanáticos, resolvamos optar pela segurança e dissolver todos os partidos que potencialmente possam comprometer a ordem vigente, estaremos com essa atitude admitindo que sejam colocadas na ilegalidade não somente as associações de fato perigosas, mas também aquelas que apenas aparentam periculosidade. Semelhante opção pela segurança em detrimento da liberdade somente será possível se partirmos do pressuposto de que o ser humano pode ser instrumentalizado e colocado a serviço do poder público, e sua liberdade, sacrificada para salvar o coletivo. Uma vez aceita essa premissa, pode-se então justificar dissoluções de partidos políticos e de outras agremiações rotuladas como potencialmente perigosas. Mas, se invertermos a ordem e subordinarmos os imperativos de segurança aos da liberdade, e considerarmos sobretudo que a segurança presta-se a proteger igualmente a liberdade do indivíduo e de suas associações, concluiremos que não será possível dissolver um partido que apenas representa um perigo em potencial - e não real - para a sociedade. Se o Estado e sua segurança forem concebidos para servir o indivíduo, não será possível molestar alguém apenas pelo potencial de periculosidade que se atribui a essa pessoa ou associação. Numa sociedade que pressupõe a dignidade da vida humana, a democracia e o Estado de direito, será possível justificar a dissolução e a proibição de um partido político, somente quando for provado que há esse perigo, que esse partido, por exemplo, esteve diretamente envolvido em arruaças, que seus militantes praticam toda sorte de ação violenta e que o discurso de suas lideranças dissemina ódio e tensão no meio social. Mas enquanto o partido não chega a esse ponto, enquanto ainda for insignificante, haverá de ser tolerado. Em suma, são duas as opções: ou instrumentalizamos o ser humano e suas instituições, subordinando-os aos imperativos da segurança do Estado, caso em que, por simples precaução, seria possível dissolver e proibir um partido político de existir, ainda que ele não representasse perigo algum, ou subordinamos a segurança do Estado aos imperativos da liberdade, deixando para agir quando talvez seja tarde demais.

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