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Criaturas flamejantes: o fascínio da música pop pelo fogo

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Por Edmundo Leite
Atualização:

Diz a mitologia que tudo começou com uma disputa entre deuses. Enciumado por ser escalado para tocar antes do rival Chuck Berry num show em 1958, o indomável pianista Jerry Lee Lewis resolveu turbinar o final de sua já enérgica apresentação com uma surpresa para deixar o guitarrista em maus lençóis. Jerry estraçalhava as teclas tocando Whole Lotta Shakin' Goin' On no seu número de encerramento quando sacou uma garrafa de Coca-Cola cheia de fluido de isqueiro, ateou fogo no piano e continuou tocando loucamente o instrumento em chamas. Com a plateia urrando de delírio, Jerry deixou o palco triunfante e foi provocar Chuck, que aguardava no camarim a sua vez de entrar: "Continua daí, negão".

 Foto: Estadão

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Quase uma década depois, os primeiros deuses já tinham gerados filhos tão poderosos - e caprichosos - quantos eles. A era que começava no Monterey Pop Festival em 1967 colocaria novamente um negro e um branco em confronto. Ciente da grandeza alheia, os guitarristas Jimi Hendrix e Pete Townshend confabulavam nos bastidores com seus asseclas a melhor estratégia para superar o adversário. Townshend e seu The Who literalmente optaram por quebrar tudo. Ao final de My Generation, o guitarrista fez de sua Fender uma marreta, lançando-a violentamente contra o chão e destruindo amplificadores, enquanto o baterista Keith Moon cuidava de despedaçar seus tambores aos chutes. Desesperados, contra-regras do festival tentavam salvar os microfones da fúria dos rapazes ingleses que deixavam o palco sob aplausos.

Hendrix sabia que nem com todos os seus poderes nas cordas e captadores poderia superar aquele pandemônio provocado pelo Who. Então escolheu a música Wild Thing para encerrar a sua apresentação. Depois de caprichar na performance com dedilhadas selvagens, distorções, solos e simulações de sexo, pegou um pequeno recipiente com líquido inflamável, colocou a guitarra no chão e a queimou como se estivesse fazendo um sacrifício humano. As labaredas subiram e Jimi terminou o serviço quebrando o instrumento e jogando os pedaços para o público. Mais uma vez, uma peleja de titãs estava decidida pelo fogo.

Enquanto a chama no piano do psicótico Lewis tinha ares de antigas lendas contadas por muitos e vistas por poucos, o clarão da fogueira sagrada de Jimmy iluminou uma multidão. Mortais comuns, aspirantes a heróis e toda uma sorte de deuses de segunda classe da música descobriram que dominar o fogo poderia significar a sobrevivência no novo mundo. Ou até mesmo galgar alguns degraus no Olimpo do rock. Foi assim que, pouco depois da batalha de Monterey, um sátiro que atendia pelo nome de Arthur Brown apareceu cantando que era "Deus do fogo dos infernos" e que ia queimar tudo.

 Foto: Estadão

Letras de música falando de fogo - quase sempre fazendo analogia a sexo e paixão - não eram novidade na música popular, vide o maior sucesso do próprio Lewis, Great Balls the Fire. Mas Brown foi além e cantava a sua Fire com com uma maquiagem tétrica no rosto e chifres flamejantes na cabeça. Além da chama real no artefato, gravou um vídeo-clipe em que precários efeitos especiais e fumaça de gelo seco simulavam que ele e a banda tocavam no meio de chamas. Brown não era deus nem herói, tampouco deixaria maiores lembranças, mas a fagulha que largou ardendo sob o capim se alastraria tempos depois na pop music.

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 Foto: Estadão

Antes disso, o fogo voltaria a ser protagonista na música por causa de um incidente envolvendo dois grandes nomes do rock: Frank Zappa e Deep Purple. O inventivo guitarrista tocava no Casino Montreux, na cidade suíça às margens do lago Genebra, quando um fã que assistia ao show disparou um sinalizador dentro do recinto, provocando um incêndio que destruiu todo o local. O incêndio não deixou mortos nem feridos e seria apenas uma efeméride para os fãs mais devotos de Zappa se naqueles dias de dezembro de 1971 o Deep Purple não estivesse na cidade para gravar algumas músicas que entrariam no disco Machine Head. A densa nuvem de fumaça que pairou sobre a cidade e o lago durante alguns dias impressionou o baixista Roger Glover, que exclamou aos colegas: "fumaça sobre água" (Smoke on the Water). A expressão virou tema para Glover e o vocalista Ian Gillan comporem a letra daquela que se tornaria uma das mais famosas músicas do rock. Com o inconfundível riff criado pelo guitarrista Ritchie Blackmore e um poderoso refrão, Smoke on the Water é praticamente uma reportagem sobre o incêndio em Montreux:

 ...Frank Zappa and the Mothers| ...Frank zappa e osMothersWere at the best place around| Estavam lá no melhor lugarBut some stupid with a flare gun | Mas algum estúpido com um sinalizadorBurned the place to the ground | Incendiou o local até o chãoSmoke on the water, fire in the sky | Fumaça sobre a água, fogo no céu Smoke on the water ... | Fumaça sobre a água ...

Mesmo com o sucesso avassalador de Smoke on the Water, Gillan e Glover pularam fora da banda e foram substituídos por David Coverdale e Glenn Hugles. E o trabalho de estreia do novo vocalista e baixista também teria o fogo como tema. Burn, faixa de abertura que dá nome ao disco com a face de cada integrante transformada numa vela acesa na capa, foi outro grande sucesso do grupo.

The city's a blaze, the town's on fire | A cidade está em chamas, os prédios sob fogoThe woman's flames are reaching higher | As chamas da mulher estão alcançando mais altoWe were fools, we called her liar | Nós éramos tolos, a chamamos de mentirosaAll I hear is, burn! | Tudo o que ouço é, Queimem !

    Foto: Estadão

Se os europeus do Purple colocavam o fogo no centro temático de sua obra, no outro lado do Atlântico quatro rapazes de Nova York levavam o delírio pirotécnico de Arthur Brown às últimas conseqüências. Usando maquiagens, figurinos de couro e metal e recorrendo a técnicas circenses, o Kiss de Gene Simmons e Paul Stanley colocou o fogo no centro do palco, com o linguarudo baixista e vocalista levando uma tocha acesa e cuspindo fogo pela boca. Embora tenha ficado craque no número, Simmons logo aprenderia que mexer com fogo sempre traz riscos. Numa das apresentações, o fogo expelido pela boca queimou seus cabelos e o músico teve que ser socorrido por um roadie que estancou as chamas com uma toalha.

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 Foto: Estadão

O susto não fez Gene abandonar o número com fogo. Ao contrário, se aprimorou, reforçou as medidas de segurança e ordenou que o staff do Kiss desenvolvesse efeitos pirotécnicos cada vez mais elaborados para as suas apresentações. Artista com apurado faro empresarial, Gene queria que os shows do grupo fosse um tipo de entretenimento muito além da música. Queria que o público voltasse para casa maravilhado com sensações visuais, sensoriais e térmicas. E que voltasse da próxima vez. Com a banda se apresentando em lugares cada vez maiores, as explosões, fumaças e fogos de artifícios passaram a crescer na mesma proporção.

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Paralelamente, um fenômeno de origem imprecisa fez do fogo uma outra marca dos grandes shows. A partir dos festivais e com a consolidação dos concertos em estádios, o público incorporou o hábito de acender isqueiros e levantá-los para o alto quando eram tocadas músicas lentas ou românticas. Neste momento toda a parafernália em cima do palco é desligada e o show se transforma em um aconchegante lual, com os isqueiros fazendo às vezes de tocha e fogueira numa praia ou num campo deserto.

As bandas de rock pesado, principalmente de Heavy Metal, foram as primeiras a se beneficiar do potencial do fogo, mas não demorou para que artistas de todos os gêneros começassem a usar faíscas, chamas e labaredas para incrementar as suas performances. Em 1983, oconcerto do U2 no anfiteatro de Red Rock, no Colorado, catapultou a banda irlandesa ao estrelato, com uma performance arrebatadora de Sunday, Bloody, Sunday em que o fogo tem uma forte presença cênica. Labaredas saindo de três tochas gigantes ao redor do palco montado entre paredões rochosos reforçaram o clima épico da apresentação.

  Foto: Estadão

Mas se todo mundo da música pop agora achava que podia dominá-lo, o fogo avisava que até deuses não estavam livres de seus caprichos. Em 1984, entraria em cena para mudar a história de um dos maiores artista da música pop. Michael Jackson, então no auge do sucesso de Thriller, gravava um comercial da Pepsi quando o fogo provocado por uma das explosões programadas como efeito especial se espalhou por seu cabelo, causando queimaduras graves na pele e couro cabeludo. As sequelas do acidente com o fogo seriam a causa de suas transformações visuais e psicológicas do artista nos anos seguintes.

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Nem mesmo a gravidade do caso de Michael Jackson foi capaz de tirar o fogo de cena no mundo da música. De lá para cá, cada vez mais artistas de todos os estilos lançam mão do efeito. Alguns com o fogo perigosamente perto, como os Red Hot Chilli Peppers, que costumam tocar Crosstown Traffic, não por acaso de Jimi Hendrix, com capacetes que soltamchamas ininterruptas. Aqui no Brasil, Dinho, do Mamonas Assassinas, usava uma espécie de hélice pirotécnica nas costas em suas últimas apresentações. Na turnê Voodoo Lounge, nos anos 90, os shows do Rolling Stones contavam com uma serpente gigante de metal que cuspia uma enorme labareda de fogo que esquentava até quem estava mais distante do palco.

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Mas a primazia do uso do fogo continua mesmo com o Heavy Metal. E ninguém supera os alemães do Rammstein, que além de fazer do fogo o seu cenário tem um vocalista - usando uma segura roupa anti-chamas, é claro - incinerado durante o espetáculo.

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Com novas tecnologias e custos mais acessíveis, a pirotecnia deixou de ser exclusividade dos grandes nomes da música. Presente em formaturas, bailes de carnaval e shows de qualquer artista iniciante, quase sempre é usada para marcar o ponto alto das apresentações. Mesmo se o show não estiver bom, por mais tosca que seja, provoca uma pequena catarse de uh-uhs e assovios na platéia, como se fosse um convidado especial. Mas, tal qual os egocêntricos artistas com quem divide os palcos, o fogo parece não gostar que o controlem ou o limitem a uma participação efêmera. Não quer se apagar. Quer continuar a existir. Para não perecer, precisa constantemente de combustível, comburente, calor e reação em cadeia. Tendo a oportunidade, vai se alastrar, arder, queimar e incendiar. Sobreviver.

 

PS.: O título desse texto e o relato sobre Jerry Lee Lewis foram inspirados no livro Criaturas Flamejantes, de Nick Tosches, traduzido por Alexandre Matias e lançado pela editora Conrad em 2006.

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