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Memória, gente e lugares

Tatuagem na testa de acusado de roubo materializa pesadelo de Kafka

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Por Edmundo Leite
Atualização:

Não se sabe se a dupla que tatuou e filmou um rapaz acusado de tentar roubar uma bicicleta em São Bernardo do Campo alguma vez na vida leu “Na Colônia Penal”, livro do escritor Franz Kafka.

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Mas ao tatuar na testa do rapaz a inscrição “EU SOU LADRÃO E VACILÃO”, Maycon Wesley Carvalho dos Reis e Ronildo Moreira de Araújo, presos pelo crime que cometeram contra o adolescente, materializaram uma situação cruel, absurda e insana descrita no livro de Kafka publicado em 1919: escrever no corpo de acusados o crime que lhes era atribuído.

“Nossa sentença não soa severa. O mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu corpo com um rastelo. No corpo deste condenado, por exemplo, - o oficial apontou para o homem - será gravado: Honra o teu superior!”

No livro, a inscrição no corpo dos condenados era feita por um aparelho criado pelo antigo comandante de uma prisão e descrito já na abertura do texto de Kafka: “É um aparelho singular, disse o oficial ao explorador, percorrendo com um olhar até certo ponto de admiração  o aparelho que ele entanto conhecia tão bem.” 

Mais adiante, o escritor começa a detalhar, através do diálogo entre um explorador estrangeiro e um oficial da prisão, todos sem nome, o funcionamento do aparelho:

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“Como se vê, ele é composto de três partes. Com o correr do tempo surgiram denominações populares para cada uma delas. A parte de baixo tem o nome de cama, a de cima de desenhador a do meio, que oscila entre as duas, se chama rastelo.

- Rastelo?, perguntou o explorador. (...)

(...) - É rastelo, disse o oficial. O nome combina. As agulhas estão dispostas como as grades de um rastelo e o conjunto é acionado como um rastelo, embora se limita a um mesmo lugar e exija muito mais perícia. Aliás, o senhor vai compreender logo. Aqui sobre a cama coloca-se o condenado (...)

(...) O condenado é posto de bruços sobre o algodão, naturalmente nu; aqui estão, para as mãos, aqui para os pés, e aqui para o pescoço, as correias para segurá-lo firme. Aqui na cabeceira da cama, onde, como eu disse, o homem apóia primeiro a cabeça, existe este pequeno tampão de feltro, que pode ser regulado com a maior facilidade, a ponto de entrar bem na boca da pessoa. Seu objetivo é impedir que ela grite ou morda a língua. Evidentemente o homem é obrigado a admitir o feltro na boca, pois caso contrário as correias do pescoço quebram sua nuca (....)”

Como em outras obras de Kafka, o absurdo que um processo judiciário pode tomar é o centro da narrativa:

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(...) O explorador queria perguntar diversas coisas, mas à vista do homem indagou apenas: 

- Ele conhece a sentença?

- Não, disse o oficial, e quis continuar com as suas explicações. 

Mas o explorador o interrompeu: 

- Ele não conhece a própria sentença?

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- Não, repetiu o oficial e estacou um instante, como se exigisse do explorador uma fundamentação mais detalhada da sua pergunta; depois disse:

- Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentá-la na própria carne (...)

(...) - Mas ele certamente sabe que foi condenado, não?

- Também não, disse o oficial e sorriu para o explorador, como se ainda esperasse dele algumas manifestações insólitas.

- Não - disse o explorador passando a mão pela testa. - Então até agora este homem não sabe como foi acolhida a sua defesa?

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- Ele não teve a oportunidade de se defender - disse o oficial, olhando de lado como se falasse consigo mesmo e não quisesse envergonhar o explorador com o relato de coisas que lhe eram tão óbvias.

- Mas ele deve ter tido oportunidade de se defender - disse o explorador erguendo-se da cadeira. (...)

(...) - As coisas se passam da seguinte maneira. Fui nomeado juiz aqui na colônia penal. Apesar da minha juventude. Pois em todas as questões penais estive lado a lado com o comandante e sou também o que melhor conhece o aparelho. O princípio segundo qual tomo decisões é: a culpa é sempre indubitável.”

 Foto: Estadão
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