Não se sabe se a dupla que tatuou e filmou um rapaz acusado de tentar roubar uma bicicleta em São Bernardo do Campo alguma vez na vida leu “Na Colônia Penal”, livro do escritor Franz Kafka.
Mas ao tatuar na testa do rapaz a inscrição “EU SOU LADRÃO E VACILÃO”, Maycon Wesley Carvalho dos Reis e Ronildo Moreira de Araújo, presos pelo crime que cometeram contra o adolescente, materializaram uma situação cruel, absurda e insana descrita no livro de Kafka publicado em 1919: escrever no corpo de acusados o crime que lhes era atribuído.
“Nossa sentença não soa severa. O mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu corpo com um rastelo. No corpo deste condenado, por exemplo, - o oficial apontou para o homem - será gravado: Honra o teu superior!”
No livro, a inscrição no corpo dos condenados era feita por um aparelho criado pelo antigo comandante de uma prisão e descrito já na abertura do texto de Kafka: “É um aparelho singular, disse o oficial ao explorador, percorrendo com um olhar até certo ponto de admiração o aparelho que ele entanto conhecia tão bem.”
Mais adiante, o escritor começa a detalhar, através do diálogo entre um explorador estrangeiro e um oficial da prisão, todos sem nome, o funcionamento do aparelho:
“Como se vê, ele é composto de três partes. Com o correr do tempo surgiram denominações populares para cada uma delas. A parte de baixo tem o nome de cama, a de cima de desenhador a do meio, que oscila entre as duas, se chama rastelo.
- Rastelo?, perguntou o explorador. (...)
(...) - É rastelo, disse o oficial. O nome combina. As agulhas estão dispostas como as grades de um rastelo e o conjunto é acionado como um rastelo, embora se limita a um mesmo lugar e exija muito mais perícia. Aliás, o senhor vai compreender logo. Aqui sobre a cama coloca-se o condenado (...)
(...) O condenado é posto de bruços sobre o algodão, naturalmente nu; aqui estão, para as mãos, aqui para os pés, e aqui para o pescoço, as correias para segurá-lo firme. Aqui na cabeceira da cama, onde, como eu disse, o homem apóia primeiro a cabeça, existe este pequeno tampão de feltro, que pode ser regulado com a maior facilidade, a ponto de entrar bem na boca da pessoa. Seu objetivo é impedir que ela grite ou morda a língua. Evidentemente o homem é obrigado a admitir o feltro na boca, pois caso contrário as correias do pescoço quebram sua nuca (....)”
Como em outras obras de Kafka, o absurdo que um processo judiciário pode tomar é o centro da narrativa:
(...) O explorador queria perguntar diversas coisas, mas à vista do homem indagou apenas:
- Ele conhece a sentença?
- Não, disse o oficial, e quis continuar com as suas explicações.
Mas o explorador o interrompeu:
- Ele não conhece a própria sentença?
- Não, repetiu o oficial e estacou um instante, como se exigisse do explorador uma fundamentação mais detalhada da sua pergunta; depois disse:
- Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentá-la na própria carne (...)
(...) - Mas ele certamente sabe que foi condenado, não?
- Também não, disse o oficial e sorriu para o explorador, como se ainda esperasse dele algumas manifestações insólitas.
- Não - disse o explorador passando a mão pela testa. - Então até agora este homem não sabe como foi acolhida a sua defesa?
- Ele não teve a oportunidade de se defender - disse o oficial, olhando de lado como se falasse consigo mesmo e não quisesse envergonhar o explorador com o relato de coisas que lhe eram tão óbvias.
- Mas ele deve ter tido oportunidade de se defender - disse o explorador erguendo-se da cadeira. (...)
(...) - As coisas se passam da seguinte maneira. Fui nomeado juiz aqui na colônia penal. Apesar da minha juventude. Pois em todas as questões penais estive lado a lado com o comandante e sou também o que melhor conhece o aparelho. O princípio segundo qual tomo decisões é: a culpa é sempre indubitável.”