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Opinião|Sobre beagles, comunistas, orixás e ameaças à democracia

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 Foto: Estadão

Três iniciativas, sem relação entre si, chamaram a minha atenção por carregar elementos de desobediência civil. Na madrugada da última sexta (18), ativistas invadiram o Instituto Royal, em São Roque (SP), e levaram quase 200 cães que eram usados em testes para as indústrias farmacêuticas e de cosméticos. No mês passado, um estudante catarinense autodeclarado "de direita até a medula, monarquista e budista" se recusou a fazer um trabalho universitário sobre Karl Marx. Atitude semelhante aconteceu no fim de 2012, quando um grupo de estudantes evangélicos amazonenses não fez uma tarefa sobre a influência dos negros e dos índios na literatura brasileira, alegando que, caso fizessem a atividade, estariam "compactuando com a ideia de que outros deuses existem", contrariando a sua fé.

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Nos três casos, indivíduos contestaram o que poderia ser chamado de "ordem estabelecida". Se nos dois últimos o problema ficou na esfera educacional, no primeiro ela virou caso de polícia. Mais que simples questões de crenças (morais, políticas ou religiosas), os três atos embutem rebeldia em que as pessoas decidem "fazer justiça com as próprias mãos", ignorando as instituições democráticas pelas quais elas não se sentem mais representadas, ainda que pontualmente.

Por "ordem estabelecida", entenda-se o instituto realizando pesquisas consideradas necessárias e legítimas para benefício de seres humanos, e as escolas propondo atividades adequadas à formação acadêmica e até mesmo de cidadania dos estudantes. No primeiro caso, a comunidade científica afirma que não há alternativas viáveis aos testes com animais, regulamentados internacionalmente. Já os trabalhos escolares cumprem o papel de apresentar aos alunos elementos culturais e históricos importantes para sua formação. Em nenhum momento, propõem mudanças ou sequer ameaçam suas crenças (e honestamente não vejo como trabalhos escolares teriam esse poder).

A democracia só é viável quando os indivíduos concordam em viver harmoniosamente com as diferenças. As escolas particularmente devem ser espaço de tolerância a elas. Ninguém concorda com tudo o que acontece nesse mundo, mas, para cada uma das coisas que nele existem, por mais malucas que nos possam parecer, existe um grupo que gosta delas.

Os invasores do Instituto Royal e os estudantes fizeram coisas em que acreditavam, o que é um direito deles. Mas direitos implicam em deveres: os ativistas podem responder criminalmente e os alunos podem ficar sem as respectivas notas. É justo. Caso contrário, se cada um resolvesse moldar seu entorno egoistamente com base no que acredita ou gosta, a sociedade seria inviabilizada, pois sempre haveria outras pessoas que não estariam de acordo. E, se igualmente resolvessem resistir, seria a barbárie.

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Opinião por Paulo Silvestre

É jornalista, consultor e palestrante de customer experience, mídia, cultura e transformação digital. É professor da Universidade Mackenzie e da PUC–SP, e articulista do Estadão. Foi executivo na AOL, Editora Abril, Estadão, Saraiva e Samsung. Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP, é LinkedIn Top Voice desde 2016.

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