A rainha do samba-de-roda paulista

Maria Esther, de 83 anos, que ajudou a fundar a primeira escola de São Paulo, continua vaidosa e temperamental

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Por Livia Deodato
Atualização:

Há pouco mais de uma semana, a entrevista com a octogenária Maria Esther foi marcada. Data, hora e local agendados, 54 quilômetros percorridos até o berço do samba rural paulista (assim denominado por Mário de Andrade, em 1937), todo o grupo fundado por ela, o Samba-de-Roda de Pirapora do Bom Jesus, vestido a caráter, reunido no Espaço Cultural Samba Paulista Vivo. E cadê dona Maria Esther? "Ela mandou bilhete hoje de manhã, dizendo que não viria mais. Ela é assim, geniosa. Até ontem estava tudo acertado, hoje acordou e não queria ver ninguém", disse Milton Leite Júnior, secretário de Cultura e Turismo de Pirapora. "Já a procuramos em todo lugar e nada." Otávia Batista de Castro, de 49 anos, é a sucessora de dona Maria Esther - que completa 84 em maio e parece ter apenas 15 quando dança. Enquanto era elaborado um plano estratégico para convencer a temperamental senhorinha, Otávia ciceroneou a reportagem pelo casarão antigo onde hoje funciona o espaço dedicado à memória do samba nascido em São Paulo - de ritmo muito peculiar e pouco difundido, o samba-de-bumbo. "Essa casa foi construída no século 18 pelos vicentinos, com o objetivo de abrigar os pobres. Até 1995 ainda tinha gente morando aqui", conta. O grande salão ainda preserva uma dezena de portas intercaladas por janelas, que Otávia aponta como pertencentes a cômodos únicos - vestígios do cortiço que ali havia. Apenas em 2003 o casarão foi transformado em ponto de encontro de grupos que buscam preservar a tradição musical paulista. Entre um "causo" e outro contado por Otávia, como o de quando a Igreja Católica construiu dois barracões para abrigar escravos que acompanhavam seus senhores na procissão em devoção a Bom Jesus, ela revela que sua relação com dona Maria Esther Camargo Lara não é lá muito boa. Uma das maiores representantes vivas do samba rural paulista não admite ter de abdicar um dia de seu trono. "A gente tem que dar continuação, não queremos que o samba morra", justifica Otávia. Agora é hora de sambar. Otávia entoa o primeiro o verso, que mais parece uma reza: "?Vinha vindo? em Pirapora." Ao que todos respondem: "Eeeee." "Vim aqui pra visitar/Aaaaa/Bom Jesus de Pirapora/Eeeee/Ele vai nos ajudar/Aaaaa/Eu ?venho vindo?/Chegando agora/Vim visitar meu Bom Jesus de Pirapora." Soa uma primeira forte batida no bumbo. E todos começam a dançar, em roda, ao ritmo bem marcado do instrumento. Na seqüência, entram canções mais brejeiras, como a do Viagra do homem com mais de 40 e a do relojoeiro - "No ?arto? daquele morro/Tem um relojoeiro/Quando vê perna de moça/Faz relógio sem ponteiro." Gargalhadas, mulheres e saias rodantes, homens e chocalhos. Vamos atrás de dona Maria Esther. Da birrenta rainha que fundou não só o Grupo Samba de Roda como a primeira escola de samba de São Paulo, a Lavapés, ao lado de Madrinha Eunice, na década de 30. A casinha, pintada de vermelho com as arestas da janela e a porta em azul, está com o postigo entreaberto. Preso nele, um oratório com imagens de santos e terços. Um rosto muito vaidoso aparece atrás da porta. Brincos de ouro, pinceladas bem marcadas de blush vermelho nas bochechas, sobrancelhas feitas com delineador. "Ah, hoje não posso sair, não." Com jeitinho, vamos tentando persuadi-la - o que não leva mais do que cinco minutos. Dona Maria Esther é charmosa e faz jus ao apelido nobre que lhe deram. "Ela não se mistura com o pessoal do grupo. Diz que ?rainha não pode se dar com plebeus? ", conta o secretário Milton. "Olha, voltem daqui a pouco, então, porque preciso me arrumar, calçar minhas ?chinelas? ", diz, para logo em seguida emendar, bem baixinho, com um sorriso de canto de boca: "Tenho um congá, as meninas vão vir aqui." Quinze minutos depois, estamos de volta. A enigmática dona Maria Esther convida a reportagem para entrar em sua casa. "Na frente do oratório ali, cruze as mãos três vezes e diga axé", orienta. Sua casa tem apenas dois cômodos entulhados de caixas, latinhas, portas de armário, sacolas plásticas, imagens de santos, bonecos caolhos, portas imensas de armários. Não tem pia na cozinha, a única janela da casa - que dá para a rua - não abre, o banheiro é separado do quarto por um pano estampado de cachorros. A cama de dona Maria Esther é ocupada por objetos não identificados, cobertos por uma imensa manta. "Aqui embaixo não posso dizer o que tem, não." Para seu repouso, sobra apenas uma estreita faixa do colchão. Na parede bem acima da cama, um facão de bronze, entrecruzado com várias guias. "Isso aqui eu não posso dizer o que é, não." Todas as fantasias de carnaval que dona Maria Esther já usou também estão penduradas no quarto, guardadas dentro de sacos plásticos empoeirados. "Tá vendo essa daqui, ó? Foi da ala dos artistas da Vai-Vai. Sabe quem é esse? O Pelé!", diz, apontando para uma máscara irreconhecível do ex-jogador. Falante, vai emendando uma história na outra de forma lógica, mas sem precisar o tempo. Para ela, todos os seus inesquecíveis momentos foram quando tinha 15, 16 anos. Ela conta que apanhava muito de seu pai português, quando ele descobria que ela havia saído às escondidas para espiar os negros dançando no barracão. "Ele me batia com vara de marmelo. Tomei muito banho de salmoura para sarar das feridas." Os negros, que não permitiam que brancos participassem de suas rodas-de-samba, ficaram com dó de dona Maria Esther quando a viram apanhando. E abriram uma exceção àquela bela menina. Dali em diante, não deixou mais de apimentar o samba com sua cadência. Foi, inclusive, muito amiga do sambista Geraldo Filme, para quem fez os versos de improviso que originaram mais tarde a célebre canção Samba de Pirapora. Uma de suas máximas, que repete à exaustão, é "idade não regula, o que regula é o rebolado". AO SOM DO BATUQUE Pouco tempo depois, ainda na década de 40, dona Maria Esther fundou o Grupo de Samba-de-Roda ao lado de outro branco, já morto, Honorato Missé, que empresta seu nome ao Espaço Cultural Samba Paulista Vivo de Pirapora. Negros, brancos e mulheres - ela era a única e sofreu muito preconceito por isso - eram bem-vindos. "O que importava era o batuque", explica. Foram nessas rodas-de-samba "mescladas" que ela conheceu boa parte de seus namorados. Sim, ela não faz cerimônia para dizer que foi muito "pinta bota". "Acho que andei com mais de 50 homens." Casou-se com um negro, José Vaz de Almeida Lara, com quem teve quatro filhos - um casal morreu de bronquite. Quando ele morreu tuberculoso, dona Maria Esther tentou se matar com um dos filhos, Carlos Alberto, de apenas 2 anos. "Eu quis me jogar no rio lá em Cubatão, amarrei ele ao meu colo com um cinto." O juizado tomou a guarda dos dois filhos, que ela só foi rever quando atingiram a maioridade. "Eu sofri muito, nossa mãe", pensa alto. Mas todo o sofrimento parece arrefecer quando ela pisa no centro da roda-de-samba. Com sua voz forte, entoa versos de duplo sentido, levanta a saia e encara o bumbo como se não tivesse saído da adolescência. Sorte nossa que o pai de santo garantiu que ela só vai morrer quando completar 100 anos.

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