Bolsonaro altera Lei Maria da Penha para obrigar agressor a ressarcir custos ao SUS

Presidente confirmou teor de projeto que dispõe sobre a responsabilidade do agressor em pagar os custos relacionados aos serviços de saúde prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Verba deverá ir para fundo dos Estados

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Por Julia Lindner
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BRASÍLIA - Mulheres vítimas de violência doméstica e familiar deverão ser indenizadas por tratamentos médicos realizados em decorrência de agressões, seja por ação direta ou omissão dos acusados. A responsabilização financeira do agressor, mesmo antes do fim do processo, faz parte de uma lei sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro nesta terça-feira, 17. A proposta foi aprovada pela Câmara dos Deputados em agosto.

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O texto não prevê punição criminal para o agressor caso ele descumpra a decisão. Como principal novidade, a nova lei autoriza de maneira expressa a possibilidade do Estado cobrar ressarcimento do agressor a serviços prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No caso das mulheres, já era prevista a cobrança de acordo com a interpretação dos juízes, mas a previsão na legislação, na visão de técnicos do Palácio do Planalto, ajuda a difundir a "cultura" da cobrança e enfraquece teses da defesa.

De acordo com o texto da proposta, o agressor fica obrigado a ressarcir todos os danos causados, inclusive ao Estado. Os recursos devolvidos ao SUS, segundo a lei, serão direcionados ao Fundo de Saúde do Estado ou município responsável pelas unidades de saúde que prestarem os serviços.

Além disso, a proposta estabelece que os agressores também serão obrigados a ressarcir o Estado por dispositivos de segurança usados para casos de "perigo iminente" e em casos de monitoramento das vítimas por ação de medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha.

"O ressarcimento de que tratam os §§ 4º e 5º deste artigo não poderá importar ônus de qualquer natureza ao patrimônio da mulher e dos seus dependentes, nem configurar atenuante ou ensejar possibilidade de substituição da pena aplicada", diz o texto aprovado pela Câmara, em agosto.

Ao sancionar o texto, o presidente Bolsonaro justificou que a medida é necessária para "obrigar o agressor familiar/doméstico a responder pelos seus atos de violência contra a mulher, não só na esfera penal e na criminalização de sua conduta, mas também por meio do ressarcimento aos danos materiais e morais causados pela sua conduta ilícita".

"Ademais, por meio desta medida busca-se reforçar a legislação e as políticas públicas que visam coibir a violência contra as mulheres e, consequentemente, garantir a proteção à família", afirma a justificativa do presidente.

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Mulheres realizam ato no Rio Foto: FABIO MOTTA/ESTADAO - 11/05/2017

A presidência ressalta que o projeto sancionado não traz impacto no Orçamento, já que não cria e nem modifica despesa. A proposta entra em vigor 45 dias da data de sua publicação, o que deve ocorrer na edição de quarta-feira do Diário Oficial da União (DOU).

Durante a tramitação do projeto, a Câmara retirou alteração feita pelo Senado que dizia que o "condenado" deveria ressarcir a vítima. Desta forma, os deputados permitiram que as vítimas consigam ser indenizadas mesmo antes do fim da tramitação do processo penal.

"Se a responsabilidade pelo ressarcimento ficar vinculada à condenação prévia do agressor, que poderia inclusive ser definido, pela jurisprudência, somente após o trânsito em julgado do processo penal, as chances de frustração da cobrança dos danos seriam muito diminuídas", justificou o relator.

O Estado mostrou na semana passada que o Brasil registrou 180 casos de estupro e 720 agressões em contexto de violência doméstica por dia em 2018, segundo dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Os números de estupro são os maiores desde 2009, ano de início da análise após uma alteração na abrangência da lei. Crianças e adolescentes são a maior parte das vítimas.

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Já temos leis, precisamos de políticas públicas, diz promotora

A promotora Silvia Chakian, integrante da promotoria voltada ao enfrentamento à violência Doméstica do Ministério Público de São Paulo, disse que é necessário ver com cautela legislações como essas, apesar da importância de se avançar nas políticas de responsabilização do autor de violência para além da esfera penal. "Pensando na efetividade da medida, algumas preocupações surgem. A punição contra o autor não pode afetar a subsistência da vítima e dos filhos quando ela permanecer com vínculo familiar. Como essa distinção de patrimônio será feita?", questionou.

Ela lembrou que já existe, no Código de Processo Penal, a previsão de indenização da mulher pelos danos morais ou materiais causados em decorrência da violência. A promotora viu com ressalvas a previsão de que a ordem de indenização seja aplicada antes da condenação definitiva do acusado. "É uma questão complicada. Precisa haver certeza que o autor praticou o crime para que o Estado possa cobrar a indenização, caso contrário não há reconhecimento formal da Justiça de que aquela pessoa causou a violência."

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Diante dessas ponderações, Silvia disse que a cautela na interpretação da lei ocorre para que não avancem propostas que, na prática, poderão se tornar inexequíveis. "Já temos muitas leis e não podemos continuar buscando solução para problemas relacionados a questões culturais somente nessas legislações. Precisamos enfrentar outros entraves, como melhoras em políticas públicas e serviços de uma rede que hoje é muito deficitária." 

AGU também mira cobrança

Em 2017, Advocacia-Geral da União (AGU) e Conselho Nacional do Ministério Público firmaram acordo para compartilhar dados sobre violência doméstica. A ideia é ajudar a AGU em ações judiciais contra assassinos de mulheres, para impedir que recebam pensão por morte quando são responsáveis pelo homicídio da mulher e na cobrança dos valores pagos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a dependentes da vítima. Até aquele ano, a AGU havia proposto 14 ações do tipo, com expectativa de ter R$ 1,4 milhão ressarcido.

Amamentação

Outro projeto sancionado estabelece o direito de mães amamentarem seus filhos durante a realização de concursos públicos na administração pública direta ou indireta. A lei prevê que a mãe deverá indicar um acompanhante que será responsável pela guarda da criança. Ela poderá amamentar o filho por 30 minutos a cada duas horas./COLABOROU MARCO ANTÔNIO CARVALHO

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