‘Cena de terror’, conta professora que viu ataque na creche em MG

Maria Nicélia Pereira presenciou vigia entrar na creche em Janaúba e incendiá-la. ‘Que é isso, seu Damião?!’, foi a única frase que conseguiu dizer

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Por Felipe Resk
Atualização:

JANAÚBA - "Tá boa, Dona Célia?", perguntou o vigia Damião Soares dos Santos, de 50 anos, ao cruzar com a professora no pátio da creche, onde as crianças do maternal, os meninos de short e as meninas de calcinha, tomavam banho de mangueira. Brincando com seus alunos, entre 3 e 4 anos, Maria Nicélia Pereira, de 44, assentiu. "Eu estou muito doente", emendou o segurança, carregando a mochila preta de sempre nas costas, antes de entrar no salão da unidade de ensino. Lá dentro, outra turma, mais velha, assistia a um filme. Em questão de segundos, o homem retirou um balde e começou a espalhar um líquido nas crianças. "Que é que isso, Seu Damião?!", foi a única coisa que Célia conseguiu dizer. Tudo que viu, então, foi fogo.

Maria Nicélia, de 44 anos, tem curativos feitos por sua irmã após receber alta do hospital; vítima sofreu queimaduras nos braços, mãos e pernas. Foto: Tiago Queiroz / Estadão

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"Foi uma explosão, acho que porque o balde caiu no chão, e só veio aquela bola de fogo em cima de mim", relata Célia, que, à frente de salas de aula desde os 26, trabalha há 10 anos na Gente Inocente. Com a blusa em chamas, a professora começou a correr e gritar por socorro. "Não dei conta das crianças", lembra, com tristeza. Desesperada, arrancou a camisa, nem sabe como, e, só de sutiã, parou cerca de 500 metros após a creche, onde pedreiros realizavam uma obra às 9h30 da manhã daquela quinta-feira, 4.

Em disparada, os homens correram para o local e, com baldes de água, tentaram conter o fogo que atingiu três salas de aula (para crianças de 3 a 5 anos) e o salão principal da creche, derretendo materiais escolares, ventiladores, alimentos e até o teto, feito de PVC. O berçário, para até 2 anos, não foi atingido.

Muitos vizinhos, alarmados com a gritaria e a fumaça que tomou conta da rua, saíram de casa e tentaram ajudar no resgate das cerca de 75 crianças que estavam na unidade de ensino, além de funcionários e professores. Na creche, não havia extintores ou qualquer sistema anti-incêndio.

Presente no salão, a diretora da unidade conseguiu se esconder no único banheiro, junto com algumas crianças. Na esperança de escapar da fumaça, quebrou o vitrô para aumentar a circulação de ar. As janelas da creche tinham grade.

"Foi uma cena de terror, um trem inexplicável", diz Célia, que sofreu queimaduras nos dois braços, no rosto e nos pés, que ficaram com as marcas da sandália que ela usava no momento da tragédia. Sem saber o que fazer, a professora tentava organizar as crianças que, tossindo, gritando e chorando, saíam de lá. Muitas delas, feridas. "Me ajuda, Célia! Me ajuda!", repetia a sua auxiliar, Geni Oliveira Lopes Martins, de 63 anos, a mais velha das vítimas. "É muito difícil enxergar tudo aquilo e não poder fazer nada."

Pouco antes do atentado, Célia pediu para a auxiliar entrar na creche para buscar as mochilas em que haviam guardado as roupas das crianças, que já se preparavam para se enxugar. Com várias bolsas nas mãos, Geni foi surpreendida pelas labaredas, que lhe queimaram 60% do corpo. Em estado gravíssimo, ela foi transferida na tarde deste domingo para o Hospital João 23, em Belo Horizonte. "Eu só queria que o povo não julgassem a atitude dos outros, eu só pensei em reunir as crianças, com medo de uma explosão maior."

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Segundo a professora, uma viatura da polícia militar foi a primeira a acessar o local e ajudar no resgate. "Os bombeiros foram os últimos a chegar", diz. Outros carros começaram a apanhar as vítimas e levar aos hospitais da região que, precários, sofrem com a falta de insumos básicos, como agulhas e curativos.

Com uma criança no colo, a professora foi levada de viatura até o Hospital Regional de Janaúba, onde as vítimas recebiam banhos de soro para aliviar a dor das queimaduras. "Na mesma hora, dá uma sensação de alívio", conta. "Mas o soro do hospital acabou e continuou chegando mais gente... Os médicos começaram a jogar água nas pessoas." Com 40% do corpo queimado, a professora Marley Simone, de 42 anos, que ainda estava consciente, pediu: "Me coloquem embaixo de um chuveiro." Mais tarde, ela passaria mal e também está em estado gravíssimo.

Atentado. A tragédia na Gente Inocente aconteceu em meio a uma semana especialmente programada para o dia das crianças. Na véspera, os alunos autorizados pelos pais participaram de uma passeio a um clube da cidade, onde brincaram no parquinho. "Até a comida que a gente estava oferecendo era diferente, com pão de sal e bolo de chocolate", diz. Também aconteceram oficinas para confecções de brinquedos que, depois, foram usados pelas crianças.

Segundo investigações da Polícia Civil, o vigia Damião entrou na creche dizendo que iria entregar um atestado médico para a diretora da unidade. Após férias de três meses, ele deveria ter voltado naquela semana, mas faltou. Como só trabalhava à noite, não tinha contato com as crianças, mas participava das reunião semanais com a equipe pedagógica da creche - por isso, era conhecido por todos.

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"Ele bateu no portão, perguntaram quem é, e deixaram entrar, até porque ninguém esperava, né?", diz Célia. "Foi um atentado contra as crianças. A gente imagina que isso aconteça em São Paulo ou nos Estados Unidos, mas em uma cidadezinha pequena dessa ninguém imagina nunca, nunca, nunca."

A professora passou dois dias internada e recebeu alta no sábado, 7. Em choque, a sua filha única, a estudante Ana Cláudia Pereira, de 17 anos, dormiu agarrada na cama com a mãe. "Quando eu soube da tragédia, perdi tudo na hora. A notícia chegou como se ninguém tivesse sobrevivido."

Proprietário de um pedaço de terra na cidade vizinha de Jaíba, o marido Cláudio Pereira, de 48 anos, estava incomunicável na hora do incêndio. "Um lugar tão longe, vendo uns gados, que nem sinal de celular tinha", diz. "Só cheguei umas 13h30, uma multidão na frente da escola e, no hospital, aquele corre-corre danado", diz o comerciante, que, por causa das queimaduras, não pôde abraçar a esposa quando se encontraram.

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Em casa, Célia precisa tomar antibiótico e remédio para dor, além de trocar os curativos nos braços várias vezes por dia. Na cabeceira da cama, onde a irmã a ajuda, fica a imagem de Nossa Senhora de Aparecida. A professora faz aniversário em 11 de outubro, véspera do dia da santa. "Eu renasci naquele dia."

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