Em cartas sigilosas, ONU criticou governo brasileiro por repressão policial na Copa

Seis meses depois, correspondência continua sem retorno por parte do Brasil; governo federal informou ter encaminhado pedido de resposta aos governos do Rio e de São Paulo

PUBLICIDADE

Por Jamil Chade
Atualização:

GENEBRA - A ONU enviou cartas sigilosas ao governo brasileiro depois da Copa do Mundo de 2014 para se queixar da brutalidade da polícia e da repressão adotada por forças de ordem antes e durante o evento esportivo. As comunicações foram obtidas pelo Estado com exclusividade e revelam a preocupação dos relatores das Nações Unidas diante das violações de direitos humanos ocorridos no Brasil e da suposta tentativa de silenciar manifestantes. 

Fora do foco da imprensa, as cartas abandonaram o tradicional tom diplomático das comunicações entre ONU e os governos e denunciam violações. As comunicações ainda pediam que o Brasil desse uma série de respostas às alegações. Segundo a ONU, essas respostas jamais vieram. 

Manifestação contra a Copa do Mundo, na estação Tatuapé do Metrô, acabou em confusão em junho de 2014 Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

PUBLICIDADE

No dia 25 de agosto de 2014, os relatores da ONU para proteção da liberdade de expressão,David Kaye, Maina Kiai (relator para o direito à manifestação) e Michel Forst, relator sobre defensores de direitos humanos, enviaram uma carta conjunta ao governo brasileiro para criticar a forma "violenta" com a qual a polícia atuou para lidar com "protestos pacíficos". Houve "o uso excesso de força e a prisão arbitrária de manifestantes, incluindo defensores de direitos humanos e advogados, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro", afirma a ONU.

Segundo os relatores, cartas foram enviadas nos dias 4 de abril e 27 de junho de 2014. A ONU "lamentava" naquele momento de que o governo brasileiro sequer tinha se dado ao trabalho de responder às cartas. 

Em agosto, mais um protesto oficial da ONU chegou às mãos das autoridades em Brasília. "Desde junho de 2013, uma série de manifestações pacíficas ocorreram nas cidades brasileiras pedindo, entre outras coisas, melhores serviços públicos, contra a corrupção do governo e desvio de dinheiro público. Na maior parte das vezes, essas manifestações foram dispersadas de forma violenta pela polícia", indicava a carta.

Três incidentes foram destacados pela ONU. Um deles teria ocorrido no dia 1 de julho de 2014, numa manifestação na Praça Roosevelt, em São Paulo. "A polícia supostamente dispersou de forma violenta os manifestantes, usando gás, spray de pimenta e balas de borracha de uma forma desproporcional e indiscriminada e prendendo de forma arbitrária dois advogados por seu ativismo em monitorar casos de prisões ilegais durante os protestos", indicou a carta.

Num outro incidente, em 10 de julho de 2014, um juiz da 27ª Corte do Rio de Janeiro emitiu um mandato de prisão contra 30 pessoas, incluindo defensores de direitos humanos, suspeitos de conspiração. 

Publicidade

Imprensa. No dia 13 de julho, a fonte de preocupação da ONU é uma manifestação ocorrida no Rio de Janeiro e a reação diante da imprensa. "A polícia fechou a área e bloqueou o acesso dos profissionais de imprensa", indicou a carta. "Eles então usaram bastões de madeira, balas de borracha, gás e spray de pimenta para dispersar os manifestantes e prender mais de dez deles." 

No momento das prisões, o jornalista do grupo Mídia Ninja Filipe Peçanha apanhou. "A polícia confiscou e danificou equipamentos de mais de dez jornalistas presentes", indicou a carta da ONU. "Expressamos grave preocupação sobre as alegações de uso excessivo da força pela polícia contra manifestantes pacíficos, entre eles defensores de direitos humanos e jornalistas." 

A comunicação ainda afirma que os relatores estavam "seriamente preocupados" diante de "prisões preventivas de ativistas antes de demonstrações pacíficas" e da decisão da polícia de impedir que jornalistas chegassem às áreas de conflito. 

Mortes. O que deixou a ONU também preocupada é que, terminada a Copa do Mundo, as mortes em operações da Polícia Militar voltaram a ocorrer. Numa carta endereçada ao Itamaraty em setembro, os relatores da ONU para Execuções Sumárias, Christof Heyns, e a relatora sobre violência contra a mulher, Rashida Manjoo, denunciaram execuções no Rio de Janeiro. "Alega-se que, desde o final da Copa do Mundo, operações policiais e incursões em comunidades por diferentes unidades da Polícia Militar ocorrem quase todos os dias,as vezes com a presença do caveirão", denunciou a carta da ONU.

PUBLICIDADE

Segundo a entidade, foram mais de 30 mortos apenas na região de Acari. "Relata-se que várias dessas mortes poderiam ser consideradas como execuções extrajudiciais de pessoas que já tinham se entregue", alertou a carta. Entre os dias 15 de julho e 4 de agosto, por exemplo, nove homens foram mortos. 

"Expressamos grave preocupação diante do uso de armas de fogo desnecessárias ou indiscriminadas na comunidade do Acari, colocando todos seus residentes em risco", completou a ONU.

Resposta. O governo brasileiro admitiu que até agora não respondeu às cartas das Nações Unidas. Mas passou a responsabilidade para o governo do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Publicidade

"A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) oficiou, em setembro e em novembro de 2014, o governo do Estado do Rio de Janeiro, por meio da Superintendência de Promoção dos Direitos Humanos, a respeito dos dois casos (Execuções na Comunidade de Acari e acusações de violência policial durante manifestação contra a Copa do Mundo)", indicou o governo por meio de uma nota. Mais tarde, a secretaria informou que a Corregedoria da Polícia do Rio disse que abrirá procedimento de investigação.

Em relação ao Estado de São Paulo, a Secretaria de Direitos Humanos afirmou ter encaminhado pedido de resposta à Corregedoria da polícia, ligada à Secretaria de Segurança Pública, à ouvidoria da polícia, ao Ministério Público e à Defensoria Pública. Segundo a secretaria, não houve resposta. Procurada, a Secretaria de Segurança Pública afirmou desconhecer o envio de cartas.

Em altaBrasil
Loading...Loading...
Loading...Loading...
Loading...Loading...

Brasília insiste que isso não significa que não haja cooperação. "A Secretaria de Direitos Humanos tem cooperado ativamente com a ONU e com a OEA no que tange à prestação de informações e já teve oportunidade de formalizar amplos e detalhados esclarecimentos sobre esses assuntos que, inclusive, já foram repassados ao Alto Comissariado pelo Ministério das Relações Exteriores", indicou. "A Secretaria encaminhou representante para prestar esclarecimentos em Washington D.C., em 28 de março de 2014, sobre a temática de atos de violência ocorridos em protestos sociais em audiência convocada especificamente para tal fim pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos", apontou.

Na nota, o governo ainda "reitera seu firme compromisso em prosseguir respondendo a quaisquer solicitações dos organismos internacionais que integra, mas cabe lembrar que, como foram atos que ocorreram na esfera de competência dos Estados, o governo federal depende da colaboração dessas unidades federativas no que tange à prestação de informações".

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.