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Haitianos revelam obstáculos para integração no Brasil

Levantamento inédito de entidade internacional recomenda que governo adote medidas para não desperdiçar mão de obra qualificada

Por Jamil Chade
Atualização:
Bonny Jacquet, que chegou ao Brasil em 2010, perdeu o emprego há 1 ano e meio Foto: NILTON FUKUDA/ESTADÃO

GENEBRA - Abandonar o Haiti e migrar ao Brasil era, para muitos no país caribenho, um sonho de uma vida melhor. Mas a realidade é que, para milhares deles, não houve uma melhoria social e a integração enfrentou importantes obstáculos. Essas são algumas das conclusões de um levantamento realizado pela Organização Internacional de Migrações (OIM) e o Conselho Nacional de Imigração do Brasil. Em um raio-x inédito sobre os haitianos no País, o estudo traça o perfil dessa população no mercado de trabalho brasileiro. 

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Nos últimos meses, o fluxo de haitianos tem deixado o Brasil em direção aos Estados Unidos, ainda que muitos terminem impossibilitados de cruzar a fronteira entre o México e o território americano. Parte da explicação para esse fluxo é a crise econômica brasileira. Mas o estudo aponta que outros obstáculos para a integração também podem ter contribuído para uma decisão de deixar o Brasil. 

Se em 2011 existiam 815 haitianos com empregos no Brasil, esse número chegou a 30,4 mil em 2014. A grande maioria deles estava em São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Entre janeiro de 2012 e maio de 2016, foram emitidos 51 mil autorizações de residência para haitianos no Brasil. O número total, porém, pode superar a marca de 85 mil, somando aqueles que aguardam uma regularização de sua situação e centenas deles que entraram de forma irregular no País.

Mas é a inserção no mercado de trabalho que frustrou muitos. "Os imigrantes relatam as dificuldades de uma inserção laboral que permita uma mobilidade social ascendente em relação à posição na sociedade de origem, em termos econômicos e simbólicos", apontou o estudo. "Em geral, os imigrantes entrevistados partem de uma posição média na sociedade de origem, mas perderam essa posição no momento da chegada ao Brasil", explicou. 

Essa tendência pode se agravar ainda mais, diante da recessão econômica no Brasil. "Com o atual contexto de crise, aumenta a dificuldade dos imigrantes ascenderam socialmente após sua chegada ao Brasil", constata o estudo da OIM. 

Um dos principais obstáculos é a falta de reconhecimento de seus diplomas e habilidades. "Os imigrantes que possuem qualificação e habilidades profissionais diferenciadas encontram dificuldades em tê-las reconhecidas por órgãos governamentais e pelo setor privado", indica o levantamento. 

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"Uma das principais dificuldades é a revalidação de seus títulos escolares e obtenção de informações de ofertas de capacitação", afirmou a OIM. "Em muitos casos, habilidades e capacidades de trabalhos estão sendo desperdiçadas", alertou.

O estudo também aponta que a capacidade dos haitianos em falar várias línguas não tem sido aproveitada no Brasil. "Francês e espanhol não são valorizados como diferencial para ocupar melhores postos de trabalho", constatou o informe, que aponta que essas características foram bem recebidas por restaurantes e hotéis durante a Copa do Mundo de 2014.

A entidade, diante da situação, recomenda que "esforços governamentais e políticas públicas sejam adotadas para facilitar o melhor aproveitamento do potencial de desenvolvimento dos migrantes no mercado de trabalho".

A realidade ainda se contrasta com as perspectivas de muitos haitianos que, segundo a pesquisa, viam o Brasil como "um paraíso racial" e com a promessa jamais concretizada de salários que chegariam a US$ 3 mil. 

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Perfil. De acordo com o raio-x, a imigração é composta principalmente por homens de 20 a 49 anos, com escolaridade. 37% deles estavam empregados no setor da construção, contra 33% no setor de carnes, além 11% em restaurantes e 7% no setor de limpeza. 

"O estudo deixa claro que a migração de haitianos para o Brasil tem motivos econômicos e humanitários", declarou Matteo Mandrile, coordenador da iniciativa e membro da OIM. 

O fluxo de imigrantes começou depois do terremoto que atingiu o Haiti, em janeiro de 2010. Em 2012, o governo brasileiro iniciou a entrega de vistos humanitários, como forma de impedir a formação de rotas ilegais e controladas por grupos criminosos. Em 2015, a OIM criou em Port-au-Prince o Centro de Pedido de Visto Humanitário ao Brasil.

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"O Centro tem tido um papel crucial em reduzir a migração irregular ao Brasil e fomentando o emprego formal de haitianos, com mais de 23 mil pedidos de vistos humanitários processados nos últimos doze meses", disse Shauna Martin, que coordena o centro. 

Desempregado. Bonny Jacquet, de 28 anos, chegou ao Brasil em 2010 após ter se formado em Letras no Haiti e não encontrar emprego em seu país. Ele conta que os primeiros seis meses após a viagem foram muito difíceis por não conhecer o Brasil. "Mas depois as coisas foram muito bem, eu comecei a dar aulas de francês, depois consegui um emprego na construção civil. Tudo ia muito bem", conta.

Ele também trabalhou como auxiliar de produção e operador de máquinas em indústrias. Em 2013, com uma boa situação financeira conseguiu pagar a viagem para os dois irmãos também virem ao Brasil. Mas há um ano e meio a situação mudou, ficou desempregado e perdeu as aulas porque seus alunos também foram afetados com crise econômica do País. "Eu estava progredindo, mas a crise me afetou muito. Estou desempregado há um ano e muito desanimado", diz.

Ele conta que já pensou em ir para outro país, mas o que o mantém no Brasil é estar cursando a faculdade de Engenharia Civil. "Consegui uma bolsa de 67% e ainda consigo pagar as mensalidades porque tinha algumas economias, mas não sei por quanto mais tempo vou poder segurar as pontas sem emprego."

Jacquet diz ter sofrido muito preconceito no Brasil, principalmente em entrevistas de emprego. "Muitas vezes sei que sou mais qualificado do que os brasileiros com quem concorro, mas os empregadores dizem não ter vagas para estrangeiro", conta. Além do português e francês fluente, ele disse falar também espanhol e inglês. 

"O Brasil é um país acolhedor, mas, quando chega a crise financeira, os primeiros a sofrer são os estrangeiros", diz. Apesar disso, diz ter esperança de que a situação vai melhorar./COLABOROU ISABELA PALHARES