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Moradores de rua ganham a internet

Projetos desenvolvidos em 22 capitais contam as histórias desses anônimos e atraem seguidores

Por Carina Bacelar
Atualização:
Yzadora Monteiro e Nelson Pinho, autores da página Rio Invisível, que retrata a vida na cidade Foto: Fabio Motta/Estadão

RIO - Em São Paulo, Edson passa dias sem comer, pois tem vergonha de pedir dinheiro. Já Carlos tem de dividir a comida com os cachorros aos domingos, pois pouca gente passa para dar esmola. Em Florianópolis, Valdevino arrumou emprego de pintor e agora procura uma namorada. No Rio, Ronaldo lamenta o fechamento dos banheiros públicos da praia, onde lavava roupas e tomava banho, e sente falta de cozinhar - ele garante que sua especialidade eram os temperos. 

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Essas histórias permaneceriam desconhecidas, mas foram resgatadas por pessoas dispostas a abrir mão de tempo livre para ouvir e transmitir relatos de moradores de rua das metrópoles brasileiras. A vida deles vem despertando interesse na internet. Das 27 capitais brasileiras, 22 têm páginas no Facebook com a proposta. Somadas, essas páginas acumulavam 301.416 seguidores até a última sexta-feira. 

Depois da criação, em março de 2014, da SP Invisível, pioneira e recordista em curtidas (171.149 até dia 25), as páginas com o selo “invisível”, com relatos em primeira pessoa de moradores de rua, se proliferaram na rede e pelo País. 

Em São Paulo, os estudantes de Jornalismo Vinicius Lima, de 19 anos, e de Publicidade André Soler, de 21, se inspiraram na página “Humans of New York”, que conta a história de anônimos da metrópole americana. Segundo Lima, a SP Invisível se distancia do assistencialismo que se observa em iniciativas de auxílio a moradores de rua. “A gente não quer mudar a vida deles diretamente, como as ONG fazem. Queremos conscientizar as pessoas em casa de que todos têm uma história. É um processo mais complicado, mas mais efetivo.”

A exposição, entretanto, acaba ajudando. Um dos moradores de rua que apareceram na página, identificado como Bruno, foi localizado pela mãe, que mora no Paraná. Ele fugira de casa havia seis anos para ir a São Paulo. Após ver o depoimento na internet, ela foi a São Paulo e os dois voltaram ao Paraná. 

Ajuda. No Rio, a jornalista Yzadora Monteiro e o diretor de arte Nelson Pinho, ambos de 24 anos, também auxiliaram moradores de rua por meio da Rio Invisível. Yzadora conta que seguidores da página se sensibilizam e mandam mensagens manifestando interesse em ajudar. Um morador de rua, por exemplo, queria voltar de bicicleta para Teresina, no Piauí, e conseguiu cumprir a jornada após receber uma barraca de camping e uma bike. “A gente conseguiu um emprego em uma obra para uma das pessoas também”, afirmou ela. 

Em setembro do ano passado, para conseguir os primeiros personagens da página, hoje com 76 mil seguidores, a jornalista teve de “reeducar o olhar”. “No fim, foi só sentar ao lado do entrevistado, me apresentar e começar a conversar.”

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Autor da página Curitiba Invisível, o músico Leonardo Tavares, de 24 anos, costumava ouvir moradores de rua antes mesmo de ter a ideia de transpor os relatos para o Facebook. “Eu saía com um violão e trocava uma ideia com moradores de rua. A maioria deles falava para mim: ‘Obrigado não pela comida ou pela roupa que você me deu, mas pela atenção’.”

A prática, segundo Tavares, paulista de Araçatuba, surgiu quando ele foi morar em Curitiba com os pais, há três anos. “Em Curitiba tem um certo mito de que as pessoas são bem frias. É meio real, no dia a dia as pessoas não olham mesmo para quem precisa de ajuda. E isso foi me incomodando.”

Direitos. Iniciativas dedicadas a ouvir e entender quem mora nas ruas são um ponto fora da curva para essas pessoas, alvo frequente de “agressões físicas”, como define a pesquisadora do Na Margem, Núcleo de Pesquisas Urbanas, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Deborah Fomm.

“Sem a garantia de seus direitos básicos de existência, de ir e vir, de moradia, de trabalho, de saúde e de proteção social de qualidade, os moradores de rua convivem com violência, preconceito, estigmatização e a segregação social”, disse a pesquisadora.

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Estudo do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome realizado de agosto de 2007 a março de 2008 revelou que 52,6% da população de rua sobrevivia com algo entre R$ 20 e R$ 80 semanais. A maioria está nessa condição por problemas de alcoolismo e drogas (35,5%). Outros motivos citados foram o desemprego (29,8%) e as desavenças familiares (29,1%).

Nessa categoria se enquadrava Ayala Silva, que passou dez de seus 19 anos nas ruas após brigar com a mãe. Voltou para casa em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, após o nascimento da filha, Ágata, de 1 ano. Mas é na rua que passa a maior parte do dia. Sentada na Rua Haddock Lobo, na Tijuca, zona norte do Rio, com a filha no colo, pede dinheiro e vende doces. Quando soube das iniciativas, aprovou com o mesmo sorriso dado aos raros que a cumprimentam, para logo lembrar os “olhares de desprezo”, mais rotineiros. “Alguns passam com a mão no nariz. Às vezes, nem andam na mesma calçada.” 

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