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Na 'Chácara do Padre', sonhos no chão

Famílias têm as casas onde vivem derrubadas e tentam saída na Justiça

Foto do author André Borges
Por André Borges e Luísa Martins
Atualização:
Silvan mal teve tempo de juntar roupas retirar objetos de casa Foto: ANDRE BORGES/ESTADAO

No meio do entulho, o pedreiro Silvan Silva da Cruz separa alguns tijolos inteiros, um bocado de ferro retorcido, algo que seja aproveitável para reerguer sua casa em uma área do Sol Nascente conhecida como "Chácara do Padre". No dia 5 outubro, Silvan estava em casa com a mulher e os três filhos, de 4, 5 e 6 anos de idade, quando agentes da Agência de Fiscalização do Distrito Federal (Agefis) entraram nas ruas e partiram para cima das casas. 

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Filho de pais maranhenses que chegaram a Brasília na década de 1980 para trabalhar na área de saúde, Silvan conta que mal teve tempo de juntar as roupas das crianças e retirar algumas coisas de casa. Desempregado, viu o lar que lhe custou R$ 12 mil ir abaixo. As crianças e a mulher Jade Ferreira de Mello foram levadas para a casa de um conhecido. Assim como outros vizinhos, que já começam a reconstruir paredes de tijolos entre os escombros, Silvan diz que voltará para o lugar. "Não temos pra onde ir. Então vamos tentar reerguer nosso lar", diz. 

Um dia depois da derrubada das casas onde viviam mais de 100 famílias, um grupo de pessoas se revoltou, tomou um ônibus de passageiros e incendiou o veículo em uma área próxima. A Polícia Militar informou que dois homens armados entraram no ônibus, obrigaram os passageiros a descer e levaram o veículo para incendiá-lo.

A fuga do aluguel é o que motiva milhares de moradores a comprar um pedaço de terra, mesmo sem saber se é legalizado. Foi o que aconteceu com Carlos (nome fictício), de 26 anos. Morador do Sol Nascente, tinha emprego fixo havia quatro anos em uma empresa de marcenaria, mas seu salário ainda não o livrara do pagamento mensal de um cômodo. Sentiu-se atraído, então, pela proposta de um grileiro: prestaria para ele alguns serviços em troca de um lote de terra como pagamento. "Como eu não tinha casa para morar, achei que era um bom negócio", relatou à reportagem sob a condição de anonimato.

O grileiro teria dito que era o dono do lote e que Carlos precisaria começar a construção o mais rápido possível, sob risco de perder aquele pedaço de terra. Sem dinheiro guardado para começar a obra, sua única saída foi fazer um acordo com a empresa em que trabalhava: seria demitido para poder sacar o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FTGS) e começar a erguer o sonho de ter uma vida digna junto da mulher e dos filhos bebês, de 1 e 2 anos de idade.

Gastou quase R$ 30 mil na obra, concluída em maio. Dois meses depois, porém, começou a se espalhar pela comunidade um boato de que as casas construídas em terrenos irregulares seriam derrubadas pelo governo do DF. "Não acreditei. Só deu tempo de tirar nossos eletrodomésticos e ver nosso dinheiro ir pelo ralo. Tivemos de ir morar de favor."

Os moradores da Chácara do Padre se organizaram para tentar buscar uma saída na Justiça. O caminho até os tribunais foi aberto com uma série de cartas, depoimentos emocionados e escritos à mão, que relatam o drama de quem perdeu, de uma hora para outra, o teto onde vivia há pelo menos um ano. "Não tive nem tempo de reclamar, porque essa é a vida do pobre: não poder reclamar", escreve a moradora Irlene Rodrigues Coelho, que alega ter construído sua casa em 2013, sem ter sido informada, à época, de que se tratava de uma ocupação irregular.

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A ação truculenta de agentes durante a desocupação é narrada por Marilia Costa Silva. "Se existe Justiça, eu não creio. Estava de resguardo da minha segunda filha, quando aconteceu o inesperado: policiais entrando, jogando gás de pimenta dentro do lote em que eu estava com meus filhos. Comecei a ficar sem ar e desmaiei com o bebê nos braços, pois não aguentei o cheiro."

As cartas do Sol Nascente estão nas mãos da advogada Alinne Marques, que entrou com uma representação no Ministério Público e uma ação civil pública no Supremo Tribunal Federal. O principal argumento dos processos é a falta de notificação prévia aos moradores sobre a desocupação. "O governo tem a obrigação mínima de promover assistência e dignidade para as pessoas, mas não fez isso em nenhum momento", diz Alinne. "Todas as convenções internacionais dizem que é preciso firmar compromisso com os direitos humanos, mas o governo abriu mão disso e retirou da comunidade todos os seus direitos."

A presidente da Agência de Fiscalização de Brasília (Agefis), Bruna Maria Peres Pinheiro, negou irregularidades na condução das desocupações e disse que agentes públicos estiveram na região para tentar avisar sobre as ações, mas que são ameaçados. Por conta disso, acabam realizando esse trabalho no próprio dia em que as operações acontecem. "A Secretaria de Ação Social esteve lá antes, mas não conseguiu concluir seu trabalho. Houve tentativa de avisar, é o protocolo."

A ação na Chácara do Padre, disse Bruna, se baseou em dados históricos da ocupação. "Basta dar uma olhada em imagens de satélite do Google, por exemplo. Até julho de 2014, que é nossa data de referência, não havia nada ali. Depois disso, houve uma ocupação generalizada."

Segundo a presidente da Agefis, os trabalhos de remoção no Sol Nascente estariam próximos de 90% do que está previsto e, atualmente, a maior preocupação da agência é garantir que não haja novas ocupações. 

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