Os reis das marchinhas de carnaval

Juntos há 50 anos, Manoel Ferreira e Ruth Amaral assinam algumas das canções mais populares do País

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Por Vitor Hugo Brandalise
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Ela tem 82 anos, ele tem 78 e não há baile de carnaval - carnaval, mesmo, não axé - em que os dois não apareçam. Mais que uma demonstração de fôlego para a folia, é um sinal do sucesso de suas marchinhas. Quem não se lembra, por exemplo, de A Pipa do Vovô e Transplante de Corintiano? Com mais de 200 composições no currículo, Manoel Ferreira e Ruth Amaral são compositores de canções que muita gente sabe de cor. Muitas delas viraram sucesso na voz de Silvio Santos - "um amor de pessoa, o Frank Sinatra brasileiro", diz Ruth. A parceria dos dois, que começou apenas profissional em 1958 em uma boate de São Paulo - eles não lembram o nome, só que "era das mais chiques" -, rendeu casamento no mesmo ano. Manoel é mais compositor, Ruth é mais cantora. "Mas nós dois fazemos juntos um pouco de tudo", diz ele, com malícia e sorriso fácil, numa pausa entre um telefonema e outro, no apartamento com vista para o Palmeiras, na Pompéia, zona oeste. Só não vale abusar da brincadeira. Sim, eles são corintianos, mas estão cansados da piada batida. "Chega, né? Todo mundo faz essa gozação. Somos corintianos, mas até gostamos do Palmeiras", corta Manoel. ELEFANTE DE VIDRO Nos dias que antecedem a folia, o apartamento do casal na Rua Caraibas - cheio de espelhos e elefantes de vidro azul, maçãs de vidro vermelho, peixinhos de vidro amarelo - fica uma barulheira só. É telefone tocando de todo lado. "Sim, sim, meu filho, vamos pegar a estrada perto da hora do almoço, não se preocupe", promete Ruth, ao telefone. Os dois estavam de saída. Tinham viagem marcada para São Carlos, terra natal de Ruth, no interior, e Santos, onde se apresentariam em bailes pré-carnaval. "Tem amigo meu que diz: ?Não precisa nem olhar no calendário, é só ver quando vocês começam a aparecer que já sei: o carnaval está chegando?", diz Manoel. Se alguns torcem o nariz para as marchinhas, os dois se orgulham de conhecer o gosto popular. "Na hora de fazer música, a gente já sabe que vai ser sucesso. É algo que vem de dentro", conta Ruth, intercalando falatório e cantoria. Porque eles falam e cantam e cantam e falam, tudo ao mesmo tempo. "Gigi, eu chego lá, me dá uma colher de chá", solta a voz grossa assim, do nada, Ruth, rainha da Rádio Nacional na década de 60, cantando um trecho da marchinha Gigi. "Adoro ver o povo cantando nossas músicas. Todos de braços para cima, fazendo ?trenzinho?, brincando no salão, é uma sensação muito boa." DUPLO SENTIDO Uma das fórmulas das marchinhas é nunca ultrapassar duas estrofes de canção. "As marchinhas têm de ser curtas. É como se fosse piada cantada. Ninguém tem saco pra piada longa, né?", explica Manoel. Além das duas estrofes, as técnicas de composição da dupla seguem a tradição: muitas letras de duplo sentido, com compasso binário e acelerado, estilo marcha militar e melodias simples. Gigi, por exemplo, fez sucesso com interpretação de Silvio Santos, assim como A Bruxa Vem Aí. "Tem gente que pensa que as músicas são dele, mas quem o lançou como cantor fomos nós. Ele trabalhava na leitura de anúncios publicitários." Outro motivo de orgulho para Manoel e Ruth é sua participação nos gritos do auditório de Silvio. Foram eles - vejam só - que compuseram o Lê, lê, lê ô, Brasil!, que o "patrão" puxa em tempos de Copa do Mundo. "Hoje virou grito de toda a torcida", empolga-se Manoel. Pena que, mesmo com os telefonemas de emissoras de rádio pipocando nesta época, o carnaval de salão em São Paulo já não esteja com essa bola toda. No passado, os clubes sociais e de futebol da cidade promoviam bailes nas cinco noites de carnaval, sem contar matinês. "Todo clube de futebol que se prezasse tinha baile todos os dias. Chegamos a nos apresentar em 11 clubes diferentes em uma só noite", lembra Manoel. "Corinthians, Palmeiras, o clube Pinheiros, Piratininga, Paulistano... A gente não dava conta de tantos bailes." Este ano, dos clubes favoritos de Manoel e Ruth, apenas o Juventus , na Mooca, promoverá bailes todas as noites. O Corinthians, clube do coração do casal, só decidiu fazer baile depois de muita insistência dos sócios. No Palmeiras e no São Paulo, apenas matinês. "É culpa do axé", acusa Manoel, indignado, de lábio trêmulo. "Pode ver: axé toca toda hora, mas não fica na memória. As nossas músicas todo mundo sabe." Apesar da palhinha em São Carlos e Santos, Manoel e Ruth decidiram tirar o carnaval deste ano para "descansar". Aposentadoria? "Que nada! As marchinhas ainda vão voltar. Aí, nós voltamos com tudo também", diz um esperançoso Manoel, olhando para o lustre, também espelhado, da sala. "Por enquanto, é deixar que a música fale por nós."

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