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Os sermões políticos do cardeal Bergoglio

No Brasil, é provável que o papa seja direto e incisivo com os políticos, como foi na Argentina, durante o tempo em que dirigiu a arquidiocese de Buenos Aires

Por Marcelo Beraba
Atualização:

RIO - O que o papa Francisco dirá, no Rio, aos políticos, principais alvos da indignação que provocou as manifestações de rua em todo o Brasil desde o início de junho? Ele terá pelo menos três encontros com a presidente Dilma Rousseff, dois ou três com os executivos do Rio e um evento com a presença da presidente Cristina Kirchner, da Argentina, e outros líderes latino-americanos.

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Em algum momento ele deverá falar sobre as responsabilidades dos políticos, sobre o que a Igreja - que ele define como dos pobres - espera dos partidos, dos legisladores e dos governantes. Será duro, direto, contundente? Ou usará a linguagem indireta das metáforas e das entrelinhas que exigirá o esforço da leitura exegética?

O mais provável é que seja direto e incisivo. Como foi na Argentina, durante o tempo em que, como cardeal Bergoglio, dirigiu a arquidiocese de Buenos Aires. Uma de suas biografias - A Vida de Francisco - O Papa do Povo, de Evangelina Himitian, da editora Objetiva - narra vários episódios em que Bergoglio foi muito duro, principalmente com presidentes da República. Faço um resumo dos principais pitos que ele deu nos presidentes argentinos.

Menem. Em maio de 1999, ele aproveitou o sermão durante uma missa na catedral para advertir o presidente Carlos Menem (1989-1999), ali presente. Ele chamou a atenção para "o confronto que espera a sociedade se apostarmos em uma Argentina em que não estejam todos sentados à mesa, em que somente alguns poucos se beneficiam e a malha social se destrói, em que as brechas aumentam, e o sacrifício é de todos; então terminaremos numa sociedade a caminho do confronto". Neste mesmo sermão: "A sombra do desmembramento social aparece no horizonte, enquanto diversos interesses jogam seu jogo, alheios à necessidades de todos".

E, ainda em 99, disse que "a Igreja não pode ficar chupando o dedo diante de uma economia de mercado caprichosa, fria e calculista".

De la Rúa. Menem foi sucedido por Fernando de la Rúa (1999-2001). Na celebração do Te Deum para a posse de De la Rúa, em dezembro, na catedral de Buenos Aires, Bergoglio voltou a fustigar: "Quando a gente se esquece de olhar para o alto e de pedir sabedoria, cai no defeito tão nefasto da suficiência, e daí à vaidade, ao orgulho... Não há sabedoria". "Quando a gente se esquece de olhar para os lados, olha para si mesmo ou em seu próprio ambiente, e se esquece do povo".

Em maio do ano seguinte, sempre na catedral e com a presença de De la Rúa, ele voltou a demonstrar publicamente sua preocupação com os rumos da política argentina: "O sistema caiu em um vasto cone de sombra, a sombra da desconfiança. A sociedade argentina parece partir em um triste cortejo fúnebre, em que todos consolam os parentes, mas ninguém levanta o morto. Levante-se, Argentina!".

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Com o agravamento da crise econômica e social da Argentina, De la Rúa teve de ouvir novo sermão de Bergoglio: "Dizem ouvir e não ouvem, aplaudem ritualmente sem fazer eco, ou acham que se fala por outros".

De la Rúa renunciou em dezembro de 2001, um mês depois de ter baixado um desastroso pacote econômico, o "corralito". O congelamento dos depósitos bancários acelerou a crise social, provocou saques, panelaços e 39 mortes.

Duhalde. Eduardo Duhalde assumiu a presidência interina. Em maio de 2002, novamente num Te Deum, novamente na Catedral, teve de ouvir o diagnóstico de Bergoglio: "O país está às portas da dissolução nacional". O cardeal apontou para os que queriam "manter seus privilégios, sua ganância e suas cotas de lucros ilícitos". "Uma guerra surda está se travando em nossas ruas, a pior de todas, a dos inimigos que convivem e não se veem entre si, pois seus interesses se entrechocam dirigidos por sórdidas organizações delinquentes, só Deus sabe o que mais, aproveitando o desamparo social, a decadência da autoridade, o vazio legal e a impunidade".

Kirchner. Néstor Kirchner assumiu a presidência da Argentina em 25 de maio de 2003. Um ano depois, ele compareceu à catedral para assistir ao Te Deum. E ouviu de Bergoglio: "Este povo não acredita nos estratagemas mentirosos e medíocres. Tem esperanças, mas não se deixa iludir com soluções mágicas nascidas em obscuros arranjos e pressões do poder. Os discursos não o confundem; está cansando da insensibilidade da vertigem, do consumismo, do exibicionismo e dos anúncios estridentes".

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E continuou: "A difamação e a intriga, a transgressão com demasiada propaganda, o negar os limites, abastardar ou eliminar as instituições são parte de uma longa lista de estratagemas com que a mediocridade se encobre e protege, disposta a derrubar cegamente tudo o que a ameace. É a época de 'pensamento débil'. E se uma palavra sábia aparece, ou seja, se alguém encarna o desafio da sublimidade mesmo à custa de não poder cumprir muitos de nossos desejos, então nossa mediocridade não para até derrubá-la. Desmoronados morrem próceres, mestres, artistas, cientistas, ou simplesmente qualquer um que pense mais além do inconsciente discurso dominante. Só percebemos isso tarde demais".

Foi o último a que o casal Kirchner compareceu. Não voltaram mais à catedral para ouvir os sermões de Bergoglio. As relações de Bergoglio com Nestor sempre foram tensas. Ele via no cardeal um representante da oposição. "Nosso Deus é de todos, mas cuidado, que o diabo também chega a todos, os que usam calças e os que usam batinas". E a tensão continuou durante a Presidência de Cristina, mulher e sucessora de Nestor.

Cristina. No final de 2008 houve uma tentativa de recomposição entre a presidente e o cardeal, mas que acabou não dando certo. Cristina aceitou um convite de Bergoglio para assistir a uma missa, mas no sermão ele não se conteve: "Os direitos humanos são violados não apenas pelo terrorismo, pela repressão, pelos assassinatos, mas também pela extrema pobreza". Em seguida ela respondeu no mesmo tom: "Há dois tipos de pessoas, as que fazem declarações sobre a pobreza e as que nos dedicamos a executar ações todos os dias para combatê-la, e em todos os lugares".

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Os problemas entre Cristina e Bergoglio continuaram durante todo o mandato presidencial. No ano passado, durante a missa pelas vítimas do mega acidente de trem no bairro Once, que deixou um saldo de 51 mortes e 703 feridos, Bergoglio voltou a bater feio nos políticos: "Há responsáveis irresponsáveis que não cumpriram com seu dever. Quase a totalidade deles (os passageiros) estava indo ganhar o pão dignamente. Não nos acostumemos a que, para ganhar o pão dignamente, se tenha que viajar como gado".

Na cerimônia de posse em Roma, o papa Francisco deu de presente para as presidentes Dilma e Cristina exemplares com as conclusões da 5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, realizada em 2007 em Aparecida, interior de São Paulo. Bergoglio presidiu a comissão que redigiu o texto final. Ali está, portanto, boa parte de suas convicções religiosas e políticas.

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Não sei se Dilma e Cristina leram o "Documento de Aparecida". Se sim, tomaram conhecimento do capítulo que trata da "dimensão sociopolítica" da América Latina:

"Constatamos certo progresso democrático que se demonstra em diversos processos eleitorais. No entanto, vemos com preocupação o acelerado avanço de diversas formas de regressão autoritária por via democrática que, em certas ocasiões, resultam em regimes de corte neo-populista. Isso indica que não basta uma democracia puramente formal, fundada em procedimentos eleitorais honestos, mas que é necessária uma democracia participativa e baseada na promoção dos direitos humanos e no respeito a eles. Uma democracia sem valores como os mencionados torna-se facilmente ditadura e termina traindo o povo".

Marcelo Beraba, diretor da sucursal do Rio do jornal O Estado de S. Paulo, em coluna publicada no Broadcast Político.

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