Parentes de presos em Manaus se dividem entre prisão e o IML

Trinta e nove corpos haviam sido identificados nesta terça-feira; mutilações dificultam trabalho

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Por Marco Antônio Carvalho
Atualização:
Comunicação. Familiares tentam obter informações sobre presos por meio de bilhetinhos para agentes penitenciários Foto: DANIEL TEIXEIRA / ESTADAO

MANAUS - A doméstica Leila Silva, de 40 anos, bate com força na porta verde que mostra em letras garrafais a identificação do maior presídio do Estado do Amazonas: Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), com mais de 1,2 mil detentos. Era ao menos a décima vez que um funcionário vestindo a farda da empresa Umanizarre, terceirizada que presta serviço na unidade, abria uma portinhola da qual não se permitia ver mais do que os olhos e a boca. Resmungando, foi ele quem pegou o bilhete escrito por Leila com o nome completo de Paulo Henrique. Ela queria saber se o marido estava vivo, e entregou tremendo o pedaço de papel. 

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Ao menos oito pessoas foram ao local, acessado por meio da rodovia BR-174 e uma estrada sinuosa, e fizeram o mesmo procedimento em busca de informações de familiares e amigos em um intervalo menor que duas horas na manhã desta terça-feira, 3. A movimentação de viaturas e carros oficiais era intensa. Quarenta e oito horas depois de iniciada a rebelião na cadeia que mataria na madrugada de segunda 56 pessoas ainda não havia uma lista divulgada publicamente com os nomes dos que morreram e tiveram os corpos dilacerados durante o motim no local. O número recorde de mortos pareceu, por algumas horas, bem maior para as famílias que, sem notícia, chegaram a imaginar a vida sem um pai, marido ou filho. 

O que ajuda a explicar a demora, contaram os peritos, é que nem sequer uma das vítimas foram poupadas de perderem alguma parte do corpo. Os relativamente menos afetados perderam um membro, os mais, foram esquartejados, com os órgãos retirados e acabaram até carbonizados; uma cena de terror que chocou até os legistas acostumados a lidarem com crimes violentos na cidade. Funcionários estimaram que ao menos 80% tenham sido decapitados. Na cidade, as imagens sangrentas se espalharam pelos celulares com rapidez e dominaram as conversas cotidianas. 

Necropsia. 80% dos mortos no massacre foram decapitados Foto: DANIEL TEIXEIRA / ESTADAO

O primeiro a chegar ao Compaj na manhã desta terça havia sido o pescador aposentado João Feitosa, de 72 anos, em busca da confirmação da presença do enteado no local. A mãe do preso, conta, passou mal quando viu a notícia do crime na televisão e, doente, não sossegou enquanto Feitosa não pegou um mototáxi para ir até o local. A descrição das decapitações ainda o assustava, mesmo com o agente penitenciário reiterando para ele que o pavilhão do seu enteado não havia sido afetado pela briga e ele tinha confirmado havia pouco que o jovem estava de fato dentro da cela.

A 22 quilômetros dali, a angústia se repetia em doses mais visíveis de descaso. O Instituto Médico Legal (IML) fechou suas duas entradas e funcionários se comunicavam em intervalos de 15 em 15 minutos com as pessoas que se aglomeravam sob um sol que fez os termômetros superar os 30ºC nesta terça. Sem nenhuma assistência, as poucas informações se confundiam em uma espécie de telefone sem fio que fez, por exemplo, o agente de disciplina Octalis Paiva Pacheco, de 42 anos, ficar buscando notícias do seu enteado, preso no Instituto Antônio Trindade (Ipat), onde não se registrou nenhuma morte. "Estamos esperando para ter certeza. Não veio nenhuma lista", disse se protegendo do sol em uma das poucas sombras das proximidades.

O tratamento era igual para quem já tinha a certeza de que o parente estava morto. A operadora de caixa Caroline Marinho de Lira, de 22 anos, foi a primeira a chegar ao IML na manhã desta terça. Esperava em um banquinho próximo à portaria, até que teve de deixar o local e ser colocada para fora enquanto não vinha uma orientação de outra natureza do órgão. A confirmação para ela havia chegado antes via Whatsapp, quando se deparou com fotos do corpo do irmão Linekin Marinho de Lira, de 24 anos. Há um ano no Compaj, Lira havia confidenciado a familiares a iminência da briga. "Ele falou que depois do Natal isso ia acontecer", lamentou Caroline. Às 13h, ela tentava se proteger do sol com a mão sentada em um banquinho de plástico, agora na calçada do instituto. 

A espera foi demais para a cozinheira Ana Regina da Silva, de 47 anos, que queria saber onde estava o filho Igor Andrei Silva, de 24 anos. Desde domingo ela se dividiu em tentar informações indo ao presídio e ao IML de formas consecutivas. Na tarde desta terça, ela estourou e tentou iniciar um protesto para fechar a Avenida Noel Nutels, onde fica o instituto, como forma de chamar a atenção. A iniciativa conquistou a adesão de três pessoas; as demais permaneceram coladas na grade tentando ouvir a fala baixa de uma funcionária que tentava explicar algo. 

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O que a funcionária buscava era a cessão de fotos e informações que começassem a fornecer uma pista de identificação para alguns dos mortos, como tatuagens. Quem tinha fotografia, podia se aproximar da grade e fornecer o nome do parente. Não era certo de que haveria qualquer tipo de retorno. O canoeiro Francirlei Gomes da Silva buscava ao meio-dia saber se o irmão Fabiano Gomes da Silva havia sido uma das vítimas. Foi embora sem conseguir. 

Às 16 horas, duas tendas começaram a ser instaladas na proximidade do acesso da grade que concentrava o contato dos profissionais com os interessados. A única assistência de ordem psicológica foi de um pastor que, entoando cânticos religiosos, tentou reunir uma grande roda para afastar as dores da angústia, como repetia gritando consequentemente. Fez isso por cinco minutos e depois sumiu. Uma lista com sete confirmações foi o primeiro alento para os que ainda persistiam nas imediações do instituto no fim da tarde. O Instituto prometeu depois montar salas para atender os familiares, além de criar um grupo de Whatsapp para divulgar as informações consolidadas. 

Mais cedo, ainda na porta do Compaj com um capacete no braço e o celular no ouvido, o comerciário Nilton Lemos, de 57 anos, esboçava um sorriso enquanto falava ao telefone repetindo "graças a Deus". Nunca havia ficado tão feliz em saber que o sobrinho estava, vivo, atrás das grades e dava a boa notícia também para um amigo que procurava o filho. Colada à portinhola verde, minutos depois de Lemos, Leila também atribuía a uma intercessão divina a sobrevida do marido. Cobriu o rosto chorando e rapidamente encerrou sua angústia. Enquanto abriu o acesso ao presídio para receber uma entrega de cadeados trazidos por um motoboy, o mesmo funcionário do Compaj recebeu, de duas mulheres, mais dois bilhetinhos brancos com nomes de detentos. 

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