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Paulistano ainda nada todo mês no Rio Tietê

Leonídio, o mergulhador, faz todo tipo de serviço nas águas mais sujas de SP

Por Rodrigo Brancatelli
Atualização:

Há cerca de 100 quilômetros quadrados de área na capital paulista por onde ninguém passa, ninguém trafega e ninguém realmente conhece muito bem, nem mesmo o taxista mais escolado em São Paulo. Ninguém, vírgula. Com uma grossa roupa de PVC e um capacete amarelo que lembra um super-herói japonês, José Leonídio Rosendo dos Santos é um dos poucos mergulhadores do País treinados para entrar no Rio Tietê, aquela massa lenta de água fétida que no passado teve importância vital na história da metrópole.

 

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"São Paulo é tão lotada, né? Tão cheia de gente e de carros... E, mesmo assim, tem uma pedação da cidade que somente eu tenho coragem de entrar", brinca o guarujaense de 45 anos que não perde a chance de fazer piada e trocadilhos com a própria profissão. "É um trabalho de m... Sou um dos poucos seres humanos que conseguem sobreviver em um ambiente tão inóspito e perigoso, um lugar que tem pneu, lixo hospitalar, geladeira, fogão e até cadáver. Mas já me acostumei. Antes, eu tinha fobia de entrar no Tietê e não enxergar nada. Hoje, já estranho quando vou mergulhar em outro lugar que é limpo e tem visibilidade. É o hábito, né?"

 

Leonídio, como gosta de ser chamado, calcula já ter feito 3,5 mil mergulhos no rio em 23 anos de trabalho em São Paulo, algo como 152 mergulhos anualmente. Já chegou a ficar quase oito horas embaixo d’água no mesmo dia - hoje, a legislação permite apenas 4 horas diárias, tamanho o risco de trabalhar em um lugar que recebe 690 toneladas de esgoto por dia. Com sua roupa especial que dura apenas de três a seis meses em condições tão desfavoráveis, ele é chamado para resolver todo tipo de pepino no Tietê, de conserto de balsa e limpeza de grades à procura por equipamentos perdidos e colocação de explosivos para obras, passando por retirada de veículos ou até mesmo corpos.

 

Perigo

 

"Se você quer saber como é lá no rio, é só fechar os olhos e ficar em silêncio", conta ele. "É totalmente escuro, então o meu trabalho é procurar as coisas no tato, só com as mãos. É como entrar em um quarto escuro e ir tateando." Leonídio titubeia em contar, mas assume que muitas vezes tem até de tirar as luvas de proteção para conseguir distinguir alguma coisa importante no meio de tanto lixo - mesmo sabendo do risco de pegar um sem-número de doenças. "O Rio Tietê é quase uma Casas Bahia, né? Tem de tudo ali, de bola de futebol a eletrodoméstico. Então, eu tiro as luvas para trabalhar melhor. Mas eu nunca peguei nenhuma doença, nem frieira", diz o mergulhador. "Primeiro porque passo vaselina nas mãos, para proteger. E, quando chego em casa, sempre tomo um rum Montilla Carta Ouro para limpar as partes internas."

 

Morador desde criança de São Vicente, Leonídio se tornou mergulhador quase que por acaso, mesmo que sempre tenha sido apaixonado pelo mar. Com 18 anos, ele queria de qualquer jeito acompanhar um campeonato de surfe que estava programado para ocorrer na Praia da Joaquina, em Florianópolis. Queria conhecer seu ídolo, o surfista sul-africano Shaun Thompson. Para arrumar dinheiro para viajar, aceitou o primeiro emprego que conseguiu, o de mergulhador em uma construtora no cais de Cubatão.

 

"O problema é que eu não consegui viajar. Era tanto trabalho que não deu tempo", diz ele, que hoje pode executar tarefas embaixo d’água tão díspares quanto fotografar, vistorias obras, soldar embarcações, resgatar pessoas ou coletar amostras. Como há poucos bons profissionais no mercado, os salários podem variar de R$ 8 mil - para quem faz mergulhos de até 52 metros de profundidade - a R$ 25 mil para mergulhos de até 380 metros (os desse tipo só são permitidos por dois anos, por causa dos riscos à saúde). "O mergulhador é um peão que aprendeu a respirar embaixo d’água. Só que o risco é enorme, você pode ter um mal súbito, desmaiar. Se ficar mais de cinco minutos sem oxigênio, é morte na certa."

 

Cuidado

 

Hoje, Leonídio se considera um PhD nos rios de São Paulo, já que é um dos poucos que aguentam mergulhar nas águas sujas - o Tietê tem entre zero e 3,5 miligramas de oxigênio por litro; para ser um rio saudável, com vida abundante, é preciso ter a partir de 8 mg. Conhece aqueles bancos de areia e sujeira como a palma da mão, sabe que onde estão as armadilhas, lembra de cabeça a profundidade de cada trecho. "Há lugares com 6 metros de profundidade; em outros, a água bate na cintura", explica. "É preciso decorar o que você já encontrou antes, porque é perigoso. Já cortei meu joelho em vidro lá, teve colega que foi espetado por seringa usada. Teve gente que cortou alguma parte do corpo, necrosou e foi obrigado a amputar."

 

Um dos momentos mais marcantes de sua carreira foi quando encontrou uma mala cheia de dólares, algo em torno de US$ 2,7 mil. "Foi sem querer, abriram e tinha um monte de notas. Todo mundo apareceu para pegar um pouco, surgiu dono por todo lado, e cada um acabou ficando com cerca de US$ 200. O problema é que, a partir daí, começamos a procurar outras malas, para ver se tinha mais dinheiro. Até que um dia encontramos uma mala com uma mulher esquartejada dentro. Aí paramos de procurar mala."

 

Leonídio ainda espera colecionar histórias fantásticas como essa pelos próximos 10 anos, quando seu filho, hoje com 11, já estiver na faculdade. Até lá, acha que o Tietê pode melhorar, quem sabe ganhar um pouco de visibilidade. "Piorar não dá", diz. "Mas acho que se o governo investir e as pessoas pararem de jogar tanto lixo, dá para mudar a situação, nem que seja um pouquinho. É preciso ter vontade, de todos os lados."

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