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'Projeto que dificulta aborto legal é retrocesso'

Movimentos de mulheres organizam novo ato contra proposta do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha

Foto do author Fabiana Cambricoli
Por Fabiana Cambricoli
Atualização:

SÃO PAULO - Na próxima quinta-feira, às 17h, os movimentos de mulheres vão ocupar o vão livre do Masp no segundo protesto contra o projeto de lei 5069, de autoria do deputado Eduardo Cunha, que dificulta a realização do aborto em casos de estupro.

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Integrante da Frente Contra o Assédio e do coletivo Pagú Pra Ver de Teatro do Oprimido, a atriz Karen Izitocadi, de 37 anos, uma das organizadoras do ato, diz que a aprovação do PL significaria um retrocesso. Leia abaixo trechos da entrevista.

De que forma o projeto de lei 5069 ameaça os direitos das mulheres? É um retrocesso em relação aos cuidados da mulher que sofre violência. Há uma intenção grande de criminalizar os profissionais de saúde que prestam ajuda ou orientam o aborto legal. A gente sabe o quanto é difícil as mulheres procurarem os serviços de saúde porque nem todos são acolhedores nessa situação. Esse PL estaria apagando todos os passos que a gente deu em relação a isso. Se demos dois passos para frente, voltaríamos mais de dez. Quando diz que a mulher precisa de um boletim de ocorrência para receber os cuidados, o PL dificulta muito o processo. Os boletins de ocorrência só podem ser registrados a partir de um exame de corpo de delito e nem todas conseguem denunciar e efetivar esse boletim logo, porque, após a violência, a mulher quer se limpar, se lavar, procurar alguém em quem ela confie. Criminaliza até a pílula do dia seguinte, que não é um método abortivo e, atualmente, deve ser distribuída sem nenhuma questão. A partir do momento que o profissional de saúde só puder distribui-la quando a mulher provar que sofreu uma violência, a gente está retrocedendo muito.

Na justificativa do projeto, o deputado Eduardo Cunha diz que as medidas que facilitam o aborto, mesmo em casos de redução de danos, vieram de um plano de países ricos para controlar o crescimento demográfico de países subdesenvolvidos. Como vocês veem esse discurso? A gente vê como um discurso vazio no sentido científico, político e social. Essa ideia de que o PL não está reduzindo os direitos da mulher mas, sim, monitorando uma situação onde o aborto seria realizado frequentemente, é uma balela. A gente sabe que, pelo menos no Brasil, temos um número muito baixo de abortos legais. Ninguém quer sair abortando, principalmente quando tem de passar por um serviço que atende mulheres em situação de violência sexual. É muito custoso para a mulher chegar a esse serviço, geralmente ela não quer estar ali, ela não aceita o aborto legal mesmo quando tem direito. Muitas são religiosas, muitas têm seus valores morais, e mesmo quando não tem a questão religiosa e moral, tem uma questão de fragilidade após a violência sexual.

Manifestantes encerraram o ato na Praça da Sé, na região central de São Paulo Foto: Alex Silva/Estadão

Mesmo com a regra atual, ainda há deficiências no atendimento a essas vítimas nos serviços de saúde? Não acontece 100% como a gente gostaria em todos os lugares, nem todos os profissionais são acolhedores nessa situação, mas, atualmente, o profissional, querendo ou não, segue um protocolo, e basta o relato da mulher para que ela entre nessa linha de cuidado. Com esse projeto de lei, tudo isso se perde, porque o profissional de saúde só vai poder iniciar esse primeira linha de cuidados da mulher a partir do BO. A gente tem dados de que, de cada cem mulheres violentadas, nem 20% fazem BO, principalmente se essa violência é domiciliar. Elas acabam fazendo o relato dessa violência em outros serviços, como os de saúde, e aí vai ser obrigatório que ela se dirija à polícia, que sabemos que não é nem um pouco acolhedora nessa situação. Primeiro tem a questão da culpabilização da vítima. E mesmo na delegacia da mulher, às vezes não tem o acolhimento ou então ela está fechada, porque não funciona 24 horas.

Como vocês decidiram levar essa insatisfação para as ruas? Surgiu por conta de várias páginas de coletivos feministas que já estavam protestando por meio das redes sociais. Então a gente deu uma unificada e pensou em transformar o ativismo em algo mais concreto e ir para as ruas. A gente esperava o apoio de muitas mulheres, claro, e como tinha a figura do Cunha envolvida no projeto de lei, trouxe outras pessoas que já estavam com ele meio engasgado. Teve muita gente saindo na rua pela primeira vez, profissionais de saúde protestando, foi uma coisa bem bonita por causa disso, não eram só os movimentos que já estavam articulados ou que já estavam acostumados a ir para a rua.

Vocês pretendem fazer mais protestos? A gente define tudo em reuniões de forma coletiva. Já era uma intenção não ficar só no primeiro ato, até porque a gente percebeu que esse movimento está acontecendo no Brasil, então a ideia já era avaliar o primeiro ato e tirar uma data para o segundo. Agora a gente precisa saber o andamento do projeto de lei para definir um terceiro ato ou as próximas ações.

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Vocês pensam em fazer um protesto nacional ou um ato em Brasília quando o projeto for para votação em plenário? A gente está conversando com as organizadoras dos outros Estados. Isso está sendo pensado e articulado.

Como vocês viram as pichações feitas na Catedral da Sé após o primeiro protesto? A gente tem uma diretriz que é protestar contra o PL, mas a gente não tem domínio de todo mundo que está lá. No primeiro ato tínhamos até mulheres católicas contra o PL. Não é uma questão religiosa que estamos debatendo. Queremos focar na caminhada, nas intervenções através da música, das nossas palavras de ordem, dos coletivos artísticos. A gente quer trazer, de uma forma muito bem demonstrada, que nós, mulheres, não ficaremos caladas enquanto nos tiram direitos que nos foram muito caros de conquistar. O aborto legal foi um direito que a gente conquistou com muita luta. Os serviços de saúde, até dez anos atrás, não tinham núcleos de atendimento à violência contra a mulher. Isso foi conquistado por movimentos populares de saúde, dos movimentos populares feministas que encabeçaram isso e, de repente, por conta de um Congresso fundamentalista, de uma bancada extremamente evangélica fundamentalista que não respeita o Estado laico, isso está sendo tirado de nós. 

Na página da manifestação no Facebook, algumas militantes defendem que seja proibida a participação de homens no ato. Existe alguma determinação quanto a isso? A presença de todos é muito bem vinda, mas, claro, que se reconheça que esse é um movimento de mulheres. Os homens são muito bem vindos, precisamos deles como nossos aliados, mas não como protagonistas, porque o protagonismo é das mulheres. Alguns não entendem o que é estar como aliados. A gente sofreu algumas agressões durante o primeiro ato. Houve agressões verbais, teve um relato de um homem que se masturbou e falou palavras de baixo calão em frente às meninas que estavam sem camisa. Outra menina que estava sem camisa foi agredida por homens quando passou em frente a um bar. A gente teme essas reações. Essas são as questões, mas, sem dúvida, precisamos dos homens como nossos aliados até porque é uma questão que compromete mulheres e homens. Na questão do profissional de saúde, por exemplo, o PL tira a autonomia de uma equipe que, cientificamente, está ali para atender a mulher vítima de violência.

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