Sol Nascente: a grilagem de terra em uma das maiores favelas da América Latina

Em comunidade do Distrito Federal, facção vai além do tráfico e comercializa terras ilegalmente; negócio já atrai policiais a pastores de igrejas

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Por André Borges e Luísa Martins
Atualização:
95 mil pessoas vivem na comunidade Sol Nascente Foto: Dida Sampaio/Estadão

BRASÍLIA - Na esteira do crime organizado que promove massacres em presídios e duela para assumir o comando do tráfico em todo o País, uma nova facção criminosa tenta controlar uma das maiores favelas da América Latina, a comunidade Sol Nascente, a apenas 32 quilômetros da Praça dos Três Poderes, onde se tomam todas as decisões da República. As drogas, no entanto, deixaram de ser a única especialidade dos traficantes que atuam nos arredores de Brasília. 

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Neste trecho da Ceilândia onde os dados oficiais mostram que mais de 93% dos moradores vivem em terrenos irregulares, sem asfalto e sem coleta de lixo adequada, membros da facção Comando Sol Nascente (CSN) passaram a diversificar sua atuação para além dos papelotes de cocaína. Entrou no radar do crime o comércio ilegal de terras, um negócio lucrativo e que já chegou a atrair a atuação de policiais a pastores de igrejas. 

Hoje, a população de mais de 95 mil habitantes do Sol Nascente, já vulnerável pela falta de renda e infraestrutura mínima em saúde, educação, transporte e saneamento, se vê amedrontada pelas ameaças de criminosos e pela derrubada de casas sem aviso prévio pelo poder público. 

O lucro fácil e rápido obtido com a oferta de lotes irregulares a preços de R$ 20 mil a R$ 30 mil instigou a grilagem. As penas brandas são outro atrativo das invasões. Se a prisão por tráfico leva a pelo menos cinco anos de cadeia em regime fechado, o chamado "esbulho possessório" não costuma render mais do que um processo criminal e alguma cobrança de indenização.

A incursão de traficantes na grilagem foi identificada pela Polícia Civil, depois de dezenas de investigações e prisões feitas na região. Uma liderança do CSN já está detida no Complexo Penitenciário da Papuda, mas os crimes prosseguem. As principais vítimas dos grileiros são mulheres que vivem sozinhas e idosos, considerados mais frágeis. São vários os casos de expulsão de moradores de suas casas, para que essas sejam novamente vendidas. "Além do retorno financeiro alto, a verdade é que praticamente ninguém vai preso por grilagem de terra. Por isso, os traficantes passaram a atuar também nessa área", diz Fernando Fernandes, delegado da Polícia Civil que atua na favela.

Nas terras planas do Sol Nascente, cuja população contabilizada teria superado, em 2013, a da Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro (onde viviam 69 mil pessoas, segundo dados mais recentes do IBGE, de 2010), ainda é grande o espaço para crescer. 

Nos últimos dois anos, a busca por um pedaço de terra também passou a ser assunto recorrente em alguns templos improvisados nas ruas enlameadas da comunidade. Um esquema que envolve igrejas evangélicas de fachada é investigado pelos policiais e já chegou a alguns charlatões. 

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Pelo menos dez locais de cultos usados para negociar uma área de mais de 100 mil metros quadrados foram erguidos lado a lado por falsos pastores, que persuadiam fiéis a comprar os terrenos "em nome do Senhor". O local era conhecido como "Nova Jerusalém". Fernando Fernandes diz que Maria das Dores Ferreira dos Santos era pastora e que chegou a ser presa pela Polícia Civil, flagrada aterrando lotes e oferecendo a "terra prometida" a devotos. Foi solta tempos depois. A reportagem tentou contato no celular de Maria e deixou recados na caixa postal, mas não obteve retorno.

Com ou sem promessas de lotes, nas ruas planas da favela o mercado da fé continua a ser disputado palmo a palmo. Em um trecho esburacado de apenas 800 metros da favela, a reportagem contou 20 fachadas dos templos religiosos.

"Os fiéis suam para ter seu dinheirinho numa caderneta de poupança ao longo dos anos e, depois, acabam sendo vítimas de estelionato pelos próprios ditos pastores", diz o delegado Fernando Fernandes. "É claro que há pastores e igrejas sérias nessa região, mas o que temos visto aqui, nessas situações, não é obra de Deus."

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O telefone do delegado, que costuma receber denúncias de moradores que foram vítimas de golpe, passou a receber também ligações de políticos ligados à bancada evangélica, preocupados com os desdobramentos das investigações. Na Polícia Civil, diz Fernandes, há pelo menos mais dez investigações em curso sobre a atuação de pretensos pastores em vendas de terrenos.

"Aqui, não tratamos de ações de movimentos sociais ou projetos do Incra. O que existe realmente é uma organização criminosa que tenta se beneficiar da grilagem, chegando até a expulsar pessoas de casas para depois revendê-las", afirma o delegado. 

A ocupação de terras no Sol Nascente ganhou força no início dos anos 1990, quando a região era ocupada basicamente por chácaras e nascentes de água. O próprio nome da favela, segundo a versão mais corrente sobre seu batismo, teria se inspirado em uma dessas chácaras, uma propriedade que pertencia a uma família japonesa. O Sol Nascente seria uma referência ao Japão, a "terra onde nasce o sol". 

Os japoneses se foram, mas a favela do Sol Nascente, desconhecida da maior parte do País, continua a experimentar um processo acelerado de crescimento que avança sobre seus 940 hectares, uma área equivalente a 940 campos de futebol. 

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Em 2008, a comunidade ganhou ares oficiais e até uma sigla própria. Ao estilo brasiliense, passou a ser o SHSN, ou Setor Habitacional Sol Nascente. Apesar da constante chegada de imigrantes para a comunidade, a Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) diz que 53% da população do Sol Nascente é do próprio DF. Entre os imigrantes, a maior parte saiu do Maranhão e do Piauí. 

No Sol Nascente, onde 48% da população mora há pelo menos 15 anos, apenas 2,95% da população têm ensino superior completo e 45% não acessam a internet. Mais de 6 mil crianças menores de 6 anos estão fora da escola.

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