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Um ano após tragédia de Santa Maria, 42 sobreviventes lutam para respirar

Tratamento de intoxicados por fumaça no incêndio da boate Kiss, em 27 de janeiro de 2013, vai até o fim de 2017

Por Diego Zanchetta
Atualização:

SANTA MARIA - Kellen Ferreira, de 20 anos, estudante de terapia ocupacional na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), está entre os 42 sobreviventes da boate Kiss socorridos em estado grave na madrugada da tragédia. Quase um ano após aquele 27 de janeiro, todos ainda lutam para expelir a fuligem acumulada nos pulmões, contaminados pela fumaça tóxica que matou, por asfixia, a maior parte das 242 vítimas fatais do incêndio. A voz deles perdeu potência, a tosse nunca para e o cansaço chega depois de poucos passos.

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Alguns sobreviventes passam o dia com um gosto de "borracha queimada" na boca. Outros relatam sentir, quando respiram, o mesmo cheiro da fumaça que tomou conta da boate em menos de três minutos - eles tomam medicamento diário para expelir um catarro negro acumulado nos brônquios. "É como se eles tivessem fumado por mais de cem anos em três minutos", afirma Ana Cervi Prado, médica coordenadora do Centro Integrado de Assistência às Vítimas de Acidente (Ciava), um ambulatório montado pelo Ministério da Saúde em Santa Maria exclusivamente para recuperar os feridos. Eles vão ficar pelo menos os próximos cinco anos em tratamento.

Kellen, uma das pacientes, luta para retomar os movimentos das mãos, além de passar por inalações diárias para se recuperar de uma lesão pulmonar grave. Ela se tornou um dos símbolos dos sobreviventes. Durante 78 dias (20 deles em coma, na UTI), a estudante ficou internada em Porto Alegre, com queimaduras de terceiro grau em 20% do corpo. Nesse período, a jovem teve o coto da perna direita amputado e enxertos aplicados nos braços. Antes de deixar o hospital, foi informada de que duas de suas melhores amigas não conseguiram se salvar.

Quase um ano após aquela madrugada de horror, a jovem de Alegrete voltou às aulas, está novamente morando sozinha em Santa Maria e parece pouco se importar com as cicatrizes. "Estou melhorando, até em boate eu já fui de novo, acredita? Só que agora eu fico bem perto da porta de saída. Olho antes nas paredes, para ver se tem extintores", conta. O que ela mais quer de volta são os cabelos longos. "Os médicos falaram que foi meu cabelo comprido que salvou as costas das queimaduras. Eu adorava aquele cabelo, chegava quase na cintura", recorda. A voz baixa e rouca é outra sequela da intoxicação causada pela fumaça da Kiss.

De muletas e tosse constante, Kellen tenta seguir com bom humor uma rotina de exames, fisioterapia e atendimento psicológico. O tratamento pulmonar vai durar pelo menos até o final de 2017 no Ciava. São 28 profissionais no ambulatório criado pelo governo federal, entre fisioterapeutas, psicólogos, pneumologistas e fonoaudiólogos. Das 145 pessoas hospitalizadas após o incêndio, 71 passaram pelo centro nos últimos 12 meses, das quais 29 tiveram alta. Os 42 sobreviventes que ficaram em coma permanecem com os alvéolos pulmonares contaminados por fuligem, segundo os médicos.

Amizades e nova vida. É na sala de espera do ambulatório, que funciona dentro do Hospital Universitário, no campus da UFSM, que muitos sobreviventes da Kiss se tornaram amigos e confidentes. É ali que encontram sintonia e compreensão para desabafos de uma vida que não para de oscilar entre momentos de alegria, pela nova chance de viver, e a angústia gerada por uma rotina pouco comum entre jovens universitários. Algumas vítimas carregam cicatrizes de queimaduras que comprometeram movimentos de braços, mãos e pernas.

"O difícil, e que provoca as crises mais graves de depressão, é lidar com uma mudança estética e de cotidiano, principalmente nessa faixa etária. No meio de um campus de universidade, nas baladas, cheio de jovens saudáveis, eles são diferentes e sabem disso", afirma a psicóloga Carolina Aquino, do Ciava.

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A fumaça liberada pela espuma sintética, de uso proibido pela legislação do Rio Grande do Sul, tinha gás cianídrico, altamente tóxico. Foi esse gás que matou por asfixia a maior parte das 242 vítimas da tragédia, segundo a polícia. A temperatura estimada dentro da boate quando a fumaça tomou conta do ambiente era de 500º C. Alguns pacientes do ambulatório, onde a média de idade é de 23 anos, perderam até 80% da visão devido ao contato dos olhos com a fuligem. Esses jovens vão ter alta, na melhor das hipóteses, no final de 2017.

Nesses primeiros meses de tratamento, Kellen, a estudante de 20 anos que perdeu parte da perna direita, se tornou a responsável por promover, em seu apartamento e numa pizzaria de Santa Maria, encontros de sobreviventes.

"Os primeiros seis meses de recuperação foram muito difíceis. Mas é incrível como a gravidez colocou novo rumo na minha vida e trouxe um alento, uma esperança de tudo novo. Uma felicidade que eu achei que nunca ia sentir mais", comemora a estudante. Como outras colegas, ela foi retirada de dentro da boate, desmaiada, por um taxista desconhecido. "Eu encontrei esse taxista outro dia no supermercado e fui agradecê-lo. Ele deu a chance de eu estar aqui esperando um bebê."

Sem visão. Bárbara conheceu no ambulatório a estudante Priscila Custódio, de 24 anos, que ainda luta para recuperar a visão. Quase todos os sobreviventes que ficaram em coma saíram do hospital sem enxergar. "Até outubro eu não enxergava nada. Aos poucos está melhorando", diz a jovem. Ela também faz tratamento para expelir fuligem acumulada no pulmão. Assim como sua nova amiga Raquel Audrei, de 37 anos.

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Formada em Direito e estudante de Filosofia, Raquel ficou 12 dias entubada após a tragédia. Ela diz ser o melhor momento do dia quando está com as amigas sobreviventes no ambulatório.

"Depois de tudo o que eu passei, a primeira pergunta que as pessoas lá fora fazem para mim é sempre a mesma: "O que você, com 37 anos, estava fazendo dentro da boate?’. Eu faço Filosofia, sempre tive muitos amigos na universidade. E sou solteira. Mesmo assim as pessoas questionam o motivo de eu ter ido naquela festa antes de perguntar como está sendo a recuperação. Aqui no ambulatório não, as pessoas sabem exatamente qual é a sua dor", indigna-se a advogada. "E eu realmente não poderia ter morrido. Meu irmão faleceu em um acidente de carro com 18 anos e meus pais não suportariam enterrar outra filha. Quando fico triste e penso nisso, já me recupero de novo", acrescenta a advogada, que também teve queimaduras de terceiro grau nas costas e no quadril.

Recomeço. Desde outubro, quando começou a namorar, o tratamento contra a lesão no pulmão também se tornou menos angustiante para a estudante Camille Kirinus, de 22 anos, que ficou nove dias na UTI após o incêndio. Na tragédia ela perdeu 13 amigas. "Se não fosse meu namorado não estaria aguentando tudo. Ainda mais agora, que vai completar um ano e todo mundo está de coração apertado. Ele não sai do meu lado, me apoia demais. Estou feliz", afirma a jovem, com sorriso e olhar típicos de quem descobriu algo novo na vida.

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Ela, como os outros 42 sobreviventes em tratamento, ainda espera ganhar autorização médica para praticar esportes e dar um mergulho no mar. Kellen também não vê a hora de poder ir à praia. "Enquanto isso, em casa, chorando na minha cama é que não vou ficar. Quero terminar minha faculdade. Quem sabe depois do tratamento eu não consigo fazer um mestrado no exterior, né?", diz a jovem estudante de terapia ocupacional.

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