Justiça do Rio visita e liberta jovens infratores

Novidade no Estado desagradou ao MP; autores de crimes como estupro e homicídio estão entre os que receberam benefício

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Por Roberta Pennafort
Atualização:

RIO - Filho de pai ausente e mãe “muito nervosa”, com quem não se dá, A. entrou para o tráfico por não aguentar a rotina de trabalho como servente de obra ou auxiliar de padaria. Não queria mais madrugar, carregar peso, se esforçar um mês inteiro por R$ 700. “Vendendo droga, cheguei a tirar R$ 1 mil por dia. É uma tentação. Mas não quero mais, posso acabar aqui de novo. Vou conservar minha liberdade, cuidar do meu filho, de 9 meses, tentar trabalhar com gastronomia”, planejava o rapaz de 17 anos na segunda-feira, prestes a ser liberado do Educandário Santo Expedito, em Bangu, zona oeste. 

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Na quarta internação em unidade do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), A. foi beneficiado pelo novo sistema de reavaliações de processos, em vigor desde abril. Em vez de só analisar pareceres do Degase, elaborados por psicólogo, pedagogo e assistente social, que indicam se o jovem precisa cumprir a chamada medida socioeducativa por mais tempo, a Justiça tem ido às unidades entrevistar internos e responsáveis. 

A novidade desagradou ao Ministério Público (MP), responsável pela análise prévia dos processos, pois a maior parte dos infratores analisados em abril recebeu progressão de regime ou extinção da pena, incluindo autores de crimes graves. Como exemplos, o do rapaz de 14 anos internado havia dois pelo estupro da bisavó, acamada, em surto provocado por drogas e álcool; e o do jovem que matou a namorada grávida, de 14 anos, com ajuda de um amigo que lhe pagara R$ 40 (os dois poderiam ser o pai do bebê, daí a ação conjunta). 

 Foto: Infográficos/Estadão

Em três audiências no Santo Expedito e na Escola João Luiz Alves, as mais populosas do Estado, nos dias 6, 13 e 27 de abril, foram examinados 255 processos. Os dados da primeira não foram divulgados. Nas outras, 22 infratores ganharam liberdade e 54 passaram para regimes de liberdade assistida (apresentação semanal ao Centro de Referência Especializado da Assistência Social, o Crea) ou semiliberdade (o jovem fica sob a tutela do Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente, o Criaad, de segunda a sexta-feira, podendo ir para casa nos fins de semana). Nove foram mantidos nas unidades. 

Descalabro e facções. Para o Ministério Público, trata-se de “um verdadeiro descalabro” o “mutirão” que tem por meta esvaziar as unidades, hoje com 1.900 jovens de 12 a 21 anos, abrigados em celas separadas conforme as facções criminosas com as quais se identificam, para que não se digladiem - 41,5% foram apreendidos por tráfico de drogas. 

Sob a ótica do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), segundo a qual o limite para unidades de internação deve ser de 90 pessoas, o déficit de vagas no Rio é de 839. Em nota, o Ministério Público chamou o sistema de “tribunal de exceção para a sociedade”, por soltar jovens que, para o órgão, deveriam permanecer apreendidos. 

A nova dinâmica foi sugerida pelo coordenador da Vara da Infância e Juventude, desembargador Siro Darlan, e está sendo tocada pela juíza Cristiana Cordeiro, subcoordenadora. Ela já tem audiências de reavaliação marcadas até julho. A intenção é ir às 25 unidades de internação, Crea e Criaad uma vez por mês. 

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Reexames. A juíza diz que a legislação prevê os reexames em até seis meses, o que não vinha acontecendo, e a prática de ir às unidades existe em ao menos oito Estados - todos com menos internos do que o Rio. Os números de 2012 da Secretaria Nacional de Direitos Humanos mostram que o Rio é o quinto no ranking brasileiro, encabeçado por São Paulo. 

“Muitas vezes, o parecer era favorável à progressão ou à liberdade e o MP tinha uma tendência mais endurecida, até penalista, e não uma visão da criança e do adolescente”, disse a juíza.

De acordo com ela, “muitos garotos nunca foram ouvidos por um juiz e existem casos que nem precisariam de internação, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, por não ter havido violência”. “Se for tráfico sem emprego de arma ou furto, não se justifica”, afirma a juíza. Outro erro da postura do MP, a seu ver, é julgar o ato infracional como fator determinante ao avaliar se cabe a progressão, e não o comportamento do jovem na unidade.

“O ato infracional não pode ser uma tatuagem que o adolescente vá carregar a vida inteira. A sociedade deseja é que ele saia da vida criminosa. O MP quer criar uma sensação de impunidade, mas as medidas socioeducativas estão sendo cumpridas”, disse Darlan.

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Incomodado com as declarações do desembargador, o Ministério Público representou no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contra ele. O CNJ não se pronunciou. 

Reavaliação. A maior parte dos adolescentes internados no Rio - 41,53% - foi apreendida por ligação com o tráfico de drogas. São jovens pobres, em sua maioria, negros, moradores de favelas e com estrutura familiar fragilizada. Os que têm 17 anos e ganham a liberdade são alertados: se forem pegos novamente, vão para penitenciárias de adulto. 

Na segunda-feira passada, o Estado acompanhou as audiências de reavaliação no Educandário Santo Expedito e conversou com internos e parentes. Alguns não receberam pai nem mãe porque eles não tinham dinheiro para a passagem do ônibus. Dos 29 casos reanalisados naquele dia, quatro foram liberados para ir para casa, 18 tiveram progressão de regime e sete foram mantidos na unidade.

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A vendedora de artesanato Teresa Cristina Simões, de 46 anos, comemorava o fato de o filho B., de 16 anos, ganhar a liberdade assistida. Mãe solteira de cinco, ela tem o mais velho, de 22 anos, preso por tráfico. A filha de 20 anos é dependente química. 

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Quando o caçula, avião do tráfico, foi pego com maconha e cocaína, ela desmoronou. “Eu me sinto fracassada como mãe, me pergunto o que aconteceu. Criei os filhos sozinha, trabalhando. O pai não faz um carinho. Saí de uma comunidade para livrar os meninos do crime, mas não adiantou. Minha filha eu nunca vejo sã. A gente é pobre, mas quero tentar andar de cabeça erguida”, disse ela. 

Fazendo carinho na mãe, B., que já tem um filho de 2 anos, ouviu conselhos da psicóloga sobre como conduzir a nova vida. “Só ver parede e grade é um massacre. Foram quatro meses aqui e parecia que não ia acabar mais. Agora eu juro que vou mudar”, afirmou.

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