'Rei das Marchinhas', João Roberto Kelly está em plena forma

Autor de ‘Cabeleira do Zezé’, último compositor dos clássicos de blocos e bailes mantém a empolgação pelo carnaval

PUBLICIDADE

Por Roberta Pennafort
Atualização:

Aos 77 anos, 53 carnavais, João Roberto Kelly é o último compositor de marchinhas clássicas ainda em atividade. A primeira foi Cabeleira do Zezé, que estourou em 1964 e segue até hoje como uma das mais executadas nos blocos e bailes de clubes; logo em seguida, vieram Mulata Iê-Iê-Iê e Joga a Chave; na década de 1980, os sucessos Maria Sapatão e Bota a camisinha. A composição mais recente é Eu quero dinheiro, que ele toca e canta com o mesmo entusiasmo ao teclado de sua sala, em Copacabana, zona sul do Rio, saudando a melhor época do ano: a chegada do carnaval.

PUBLICIDADE

“Quando vai se aproximando o dia 31 de dezembro, já começo a sentir mais alegria”, diz Kelly, depois de narrar por uma hora memórias de sua trajetória momesca.

São causos que estão em Cabeleira do Zezé e outras histórias, lançado pela Editora Irmãos Vitale, responsável também pelo registro de seu repertório. O livro é uma despretensiosa reunião de relatos biográficos que Kelly compilou com o cineasta André Weller. Pianista, como Kelly, Weller dirigiu um documentário sobre ele, No balanço de Kelly, em 2010. A partir desse curta-metragem, surgiu a ideia de contar seu percurso artístico em papel.

Aos 77 anos, Kelly se entusiasma no teclado de sua casa, em Copacabana; livro conta 'causos' do do compositor Foto: Marcos Arcoverde/ ESTADÃO CONTEÚDO

“Propus fazermos não uma biografia, mas histórias, muito ao sabor das marchinhas do Kelly, que são curtas e saborosas, simples e desconcertantes. Ele já tinha recebido convites para fazer sua biografia, mas algo sisudo não combinaria com ele, que é muito engraçado”, considera Weller. “Os historiadores não vão encontrar precisão de datas e lugares, até porque o teor alcoólico em que ele vivia era alto. Mais importante do que ter começado na TV Excelsior, por exemplo, era o barzinho que tinha do lado.”

Carreira. A narrativa do carioca da Gamboa, nascido em 1938, começa na infância embalada pela música da mãe e da avó, ambas pianistas diletantes, na casa da família à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, na zona sul. Menino, ele tocava e tirava composições clássicas de ouvido. Também bem cedo já participava do carnaval: o pai o levava para assistir aos corsos da Avenida Rio Branco e brincar ao som de sambas e marchinhas como Nós, os carecas e É com esse que eu vou.

Aos 18 anos, ele estreou profissionalmente criando músicas para espetáculos de revista do pequeno teatro Jardel, em Copacabana. Antes de se aventurar nas músicas de carnaval, ainda estudante da faculdade de Direito, compôs sambas no estilo “teleco-teco”, sincopados. A estreia na TV foi em quadros do musical Times Square. Mais tarde, viraria apresentador dos programas Rio Dá Samba e Ginga brasileira.

Mas foram as marchinhas, mais do que os sambas, que fizeram de sua obra um fenômeno popular. A virada foi com a galhofa sobre o garçom de um bar da Avenida Princesa Isabel, também em Copacabana. José Antônio, vulgo Zezé, parecia um Beatle, descreve Kelly no livro, “todo cabeludo”, um estilo como poucos usavam no Rio à época. Veio o estalo: “Olha a cabeleira do Zezé! Será que ele é?” “As pessoas cantam em seguida ‘bicha!’, mas a letra não é assim”, explica o compositor, que não acha que o gênero deva se render ao politicamente correto: “A marchinha foge completamente disso”.

Publicidade

Para a historiadora Rosa Maria Araujo, presidente do Museu da Imagem e do Som e autora, com o jornalista Sérgio Cabral, do musical Sassaricando - E o Rio inventou a marchinha, atualmente na 10.ª temporada, a marca de Kelly é o bom humor. “A marchinha é sempre sarcástica, sublima o politicamente correto, faz parte do espírito moleque do carioca. As do Kelly são sempre muito engraçadas. Ele criou tipos, o Zezé, a mulata, sempre com duplo sentido.”

O pianista, cantor e compositor, João Roberto Kelly, durante entrevista cedida ao Estado em sua casa, na zona sul do Rio. Foto: Marcos Arcoverde/ESTADÃO

Rei. Kelly virou “o rei das marchinhas”, inscrevendo seu nome no panteão do qual fazem parte Haroldo Lobo (A-la-la-ô), Lamartine Babo (O teu cabelo não nega) e Braguinha (Chiquita bacana) – todos nascidos bem antes e já mortos –, com Mulata iê-iê-iê. A mulata era Vera Lúcia Couto dos Santos, a primeira a participar de um concordo de beleza nos anos 1960, segundo ele. “Sou o único vivo, mas não sou saudosista, não acho que no passado tudo era ótimo. As marchinhas têm muita força até hoje e sou um grande incentivador da garotada”, declara.

Um orgulho declarado é viver de direito autoral. “Ninguém fica milionário, mas dá para viver muito bem”, diz, sem revelar quanto as marchinhas lhe rendem. Embora não participe mais de desfiles de blocos (apenas aparece para saudar o público e receber homenagens), Kelly declara seu amor indestrutível pelo carnaval: “Não tem nada que me dê mais alegria do que ouvir gerações cantando minhas músicas”.

No próximo dia 27, ele autografa o livro e participa de um bate-papo sobre carnaval na livraria Bossa Nova e Companhia, em Copacabana, às 19 horas, com entrada gratuita. O curta No balanço de Kelly será exibido.