Foto do(a) blog

Memória, preservação e acervos

Salmo das dívidas

"Oi Tatiana: gostei muito do artigo que voce escreveu sobre o cliente do banco que se comunicou por poesia. Há muitos anos atrás quando o " O Estado " tinha um "Suplemento Literario", foi publicado na data de 13 /7/91 uma poesia bem modernista chamada "Salmo de dívidas" por Ilka Brunhilde Laurito. Tenho certeza de que voce encontrará nos arquivos do jornal e depois de ler, e apreciar como eu, vai envia-la para as pessoas que voce entrevistou, pois ainda é muito atual e dentro do espirito do artigo. Caso não encontre, avise que tentarei mandar uma cópia. Fico muito contente que nesse ambiente árido dos bancos tenha brotado a genial poesia do Mauro Jr e a resposta do banco ao cliente: as pessoas só precisam de um empurrãozinho para começar a apreciar a poesia. Obrigada pelo seu artigo que foi surpreendentemente agradavel. Não pare nisso : escreva mais. XXXX @ gmail .com leitora assidua do jornal " O Estado de São Paulo".

PUBLICIDADE

Foto do author Edmundo Leite
Por Edmundo Leite
Atualização:
Aqui vai a poesia de autoria de Ilka Brunhilde Laurito mencionada pela leitora, publicada há 20 anos no suplemento "Cultura" acompanhada de uma ilustração de Rita Rosenmayer: Foto: Estadão

Salmo das dívidas

Ilka Brunhilde Laurito

PUBLICIDADE

Para Cecília e Drumond, poetas meus que jazem em cédulas

Não há lírios. Não há campos. Que posso olhar, Senhor, nesta aridez urbana, senão a lívida floração dos bancos? Eles vicejam em cada canto em que o clamor da moeda, mais que a voz do poeta, se alevanta.

Senhor, tenho valores: não se vendem(mas também não compram). O que farei com estes papéis sem conta onde os meus versos -- tão inoperantes! -- gratuitamente cantam?...

Publicidade

Senhor, estou em estado de cheque. Eu sei que deste a César. E o que era meu, a quem será que deste?... Longa é a distância entre o meu saldo médio e o horizonte de meus débitos. César, porque é César, vai em contínua romaria às argentárias catedrais suíças. Eu pouco avanço nestas provincianas e módicas poupanças, enquanto desfio o rosário das peregrinações cotidianas.

Partir?... Bem que eu queria, não fora tão caro hospedar exílios. E para o bem geral (e o mal de mim) eu digo ao povo que sou povo. E fico.

Não há mais lírios, Senhor, principalmente brancos. Mas há bancos, alvos bancos: E os teus campos?... Serão estes perversos campos onde a flor inodora do dinheiro nunca pode ser colhida pelas mãos do jardineiro?... onde o ouro encacheado em espigas foge ao lavrador que semeou o trigo? onde o pão-ágio de cada dia quem amassa é o diabo que estufa a cotação inflávelda farinha?...

Senhor, teu pai nosso de hoje já não perdoa os devedores. Quem me perdoa, então, se a oração é a mesma, mas a letra é outra?... Ah! um novo sermão da montanha -- no topo de um ararat arquitetônico -- a esta legião de mal-aventurados que escalam o cume do cansaço sobre o chão escarpadodo trabalho! AH!...

(Férias perenes na estação da morte?... Céus de glória?...) Senhor! Nada de salários póstumos nem de postergados prêmios. Senhor, atende-me: venha a nós o nosso reino.

Publicidade

(Originalmente publicado no suplemento Cultura de O Estado de S.Paulo em 13/7/1991)

Siga o Arquivo Estadão: Twitter@arquivo_estadao e Facebook/arquivoestadao

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.