A Descoberta do Grande Telescópio*
*Para aqueles que não duraram este ano
Eu vi o silencio e recriei os passos do espaço-tempo,
Eu andei sobre as miríades de luzes,
Eu as dispus intercaladas, enquanto aquecia os rostos de velhos, que sorriam.
Eu os escolho porque não mais sabem quem são
Eu provi os embriões de toda matriz
Eu vi o silêncio das profecias quebradas pela realidade.
Eu vi a terra que, devastada, ainda permanece
Eu supro o solo com sementes de horizontes substitutos.
Eu projeto crostas de Terras que nunca se formaram.
Eu testemunhei o espelho que prometeu desvendar segredos
Segredos de um Universo que ainda não se completou.
Eu trouxe para cada mão estendida o espinho que nem chegou a crescer.
Eu fiz arranjos para sonoridades
Timbres que ninguém escutou
Eu atuo solo, aspirando parcerias
Eu compus na pedra mapas de alfabetos
Eu trouxe, contra as sombras, o sopro até que a argila vingasse
Eu interfiro na direção dos ventos para emoldurar destinos
Eu o fiz por uma ninhada, uma florada, e até para a lágrima ilhada
Eu não te dei as asas da gaivota
Nem a leveza das folhas
Para que sulcasses a areia
Eu modelei um signo que não era apenas a letra
Fiz por amor à linguagem,
Eu insisti no símbolo não codificado
Eu trouxe o mérito para cada espécie
Eu soube do sentimento das vítimas,
Entrei no coração dos indecisos
Recusei escolher entre justos e transgressores
Preferi consolar os justos que sofrem
Sob o papel dos intermediários
Eu carreguei todo pai e mãe através dos desfiladeiros da dúvida
Eu te doei filhos e descendência
Eu intercalei peso e leveza, penumbra e fresta, janela e transparência
Eu costurei com tintas, pincelei com cordas, esculpi com o hálito
Eu te mostrei as cordas, o quantum, o bóson, a onipresença da matéria escura
Eu fiz com voz
Fiz com nada
Eu sou aquele que experimenta tudo
Eu te vi nascer, crescer e te inculquei a ilusão de finitude
Eu mudei tudo, simplesmente tudo,
Porque te amei
Assim permanecerei até que o ciclo se reinicie
Eu sou o nunca e o nunca mais
Eu te fiz escolher significados
Te ofereci a liberdade que ainda temes
Te protejo de perigos sequer enumerados
Eu te amo como a ninguém
E não tendo o nome que você imaginou
Nem a textura que o mundo apregoou
Penetrei no mistério que te deixa insone
Regenero tudo que toco
Eu molho e seco
Expandi e separei mares até que as praias nascessem
Estimulei o descontrole que gera
Recriei o que consideravas obsoleto
Ensinei às partículas o giro das órbitas
Sou o que sou
E não é por isso que você é o que você é
Eu estive nos órgãos curados, nas vitalidades refeitas, em cada existência vigente
Vivo sem esperança de retribuição
E só vim porque vocês me esqueceram
Sou, como queria o filósofo, puro acontecimento
Eu produzo sonho e pesadelo
E te entreguei a chave de todas as páginas
Com o texto, propositalmente inacabado
Eu te fiz indagar por mim
E mesmo que a nostalgia te desvie
Da única incumbência:
Eu me transformei no sentido
Para que haja Um sentido.
Um.
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