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Crônica, política e derivações

A Imagem de Bosch (200o Aniversário do Museu do Prado)

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Por Paulo Rosenbaum
Atualização:

A imagem de Bosch*

 Foto: Estadão

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Sentei na beirada do sofá e ajeitei as três fotos no colo. Passei a avaliar cada uma delas sob a luz fosca do lustre incandescente da sala. A imagem era estranha. Borrada, com interrupções e riscos.

Comecei a invertê-las para avaliar outras angulações possíveis. Intercalava a leitura do relatório com a observação da imagem.

- Realmente parecem anormais, mas sem feições, apagado e mal definido. - Estão deitados. Pode ser uma montagem malfeita. Eu me aproximava para mais para detalhes - só as letras são nítidas.

Eu conhecia as técnicas de superexposição fotográfica, mas aquilo era diferente de tudo que eu já havia visto.

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Sempre tive atração pelo tema do registro de imagens, dos daguerreótipos às imagens fotográficas. Em uma pequena fototeca, amealhei meia dúzia de imagens estereoscópicas, mas meu orgulho era a antiga Leica AF5, com lentes Zeiss-Zicon pela qual paguei uma fortuna em uma época na qual me faltava dinheiro até para o básico. Voltei-me ao envoltório, a gosma que cobria as estátuas gigantes do carbono revelado. Lembrava textura de bolha, consistência de borracha. - Já vi isso antes.

Com alguma dificuldade recuperei a imagem: o tríptico "O jardim das delícias terrenas" pintado por Hieronymus Bosch exposto em Madri.

Envoltos na bolha semitransparente, numa película fina, fosca, quase translúcida, o casal sem roupas sentava-se numa folha. Ao ver a óleo sobre tela no Museu do Prado, pela primeira vez ao vivo, fiquei paralisado. Perdi todo o salão com as telas de Goya e fiquei parado ali, na frente do painel. Isso até ser colocado para fora pelos seguranças depois das duas campainhas que anunciavam o término do horário. Mas agora era completamente diferente. O que eu tinha nas mãos era outra coisa, podia pressentir que era importante.

A imagem revelada era suja, precária e indefinida. Mas foram duas horas auto-hipnotizado, sentado na ponta do sofá. Quando consultei o relógio, já passava das dezesseis e trinta. Só então me dei conta: eu era uma testemunha solitária do extraordinário.

(Trecho do livro "Céu Subterrâneo" Editora Perspectiva, 2016)

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