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Crônica, política e derivações

A Inconcebível Jerusalém

Por Paulo Rosenbaum
Atualização:

(...)vi a circulação de meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph, e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetura) cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo"

Jorge Luis Borges, O Aleph

Tradução Flávio José Cardozo

   Foto: Estadão

 

 

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Não se trata de profecia, nem das miríades de referencias que citam a cidade. E não é só que ela não pode ser monopolizada, seria impossível faze-lo. Destarte é a capital, a Capital de Israel. Cidade Capital para a fronteira das culturas. Hoje um pertencimento foi reconhecido. Não se trata de fulanizar, tanto faz se foi esse Donald ou um outro. É o ato político que se revela interessante. Independentemente do estatuto político, Jerusalém, sempre foi um porto de significados. E para além dos simbolismos atribuídos, ela é, no imaginário dos povos, um dos centros do mundo. O que importa portanto não é a mudança de embaixada, não são as trincheiras, mas observar a convivência entre as tribos. Como morada de pontos múltiplos foi fundada sobre uma pedra. E se sua paz não é feita de pedaços, nem suas muralhas construídas por sedimentos, seu ponto sagrado não se reduz aos últimos vestígios do Templo, no Muro ou no Domo. Todo núcleo está em seus habitantes.

Jerusalém, o ponto mais conflagrado da história humana transcende seus traçados arqueológicos. Jerusalém urbe, contém a vitalidade de um ponto entre todos os pontos, e, como no Aleph de Borges acumula os mundos que ainda não estão descritos. É preciso ter a experiência, vivência e o tato empírico para poder opinar. Não é preciso acreditar, quem caminhar entre suas pedras constata. Suas inflexões são judaicas, mas também drusas, armênias, muçulmanas, cristãs, beduínas e etíopes. Difícil ver um espalhamento tão amplo, uma difusão tão díspar, uma incoerência tão organizada.  Jerusalém é um parque sem homogeneidades. Nunca a cidadania teve um viés tão naturalmente cosmopolita. Um retrato das subdivisões e das uniões instáveis. Um instantâneo eterno de guerra e paz, e principalmente, paradoxo a céu aberto.

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E mesmo que não tivessem a amplitude que insistimos em atribuir a ela, sua autodeterminação como território antecede conflitos, colonizações e invasões. Jerusalém, a cidade mais destruída e reconstruída da cartografia, foi também a inspiração da poesia de Isaías e Ezequiel, Torquato Tasso e Willian Blake.

Ao contrário dos alardeamentos jornalísticos das agencias internacionais não será Jerusalém reconhecida como capital a barreira à paz. Ela a personifica. Modular o convívio e superar o vício da disputa é deixar-se levar, através das moradas e dos encontros. Seculares e religiosos, árabes ou judeus, cientistas e místicos, ímpios ou santos. A legislação é passageira, a vida que circula nas ruas, definitiva. Pois quem vive ali?

Não são os capacetes azuis da ONU, os diplomatas, ou os adidos militares. A literatura e a história ali concentrada transcende Washington e Moscou. E, infelizmente, compromissos, culpas e desafios pecuniários ainda não permitiram que se conceba os direitos de Israel a não ser com salvaguardas imorais.

Do ponto de vista estético, nada se compara em densidade e variedades cromáticas.

Quem frequentou seus mercados e testemunhou seu trafego caótico?

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Em meio à omissão geral e o silêncio dos jornais a intolerância que cresce contra as minorias pode encontrar respostas mais criativas do que preservar um status quo que já se revelou moribundo. A mudança de uma embaixada tem valor para além do simbólico. Trata-se, antes, de uma exortação para vislumbrar a saída. Conteste-se, mas admita-se: é a renovação que saúda a novidade. Um lance que força a resolução do impasse. O estatuto final da cidade poderá ser sempre incerto, mas ela, a cidade, decerto, nos sobreviverá. A decisão autocrática não é mágica, apenas move uma peça do tabuleiro viciado, bem melhor do que esperar que os dados resolvam dar as caras.

O senso comum da envelhecida diplomacia ainda não percebeu. De todos ou de ninguém ela só deve ser cuidada por quem enaltece o acúmulo de culturas.  Quiçá os homens consigam sentir o Aleph e, para além das ruínas, enxergar o extraordinário universo da cidade fincada entre Ocidente e o Oriente, a inconcebível Jerusalém.

 

 

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