Foto do(a) blog

Crônica, política e derivações

Novíssima Medicina: Devaneios do Médico como Caminhante Solitário

PUBLICIDADE

Por Paulo Rosenbaum
Atualização:

Acerca da Novíssima Medicina*

PUBLICIDADE

Talvez a Medicina seja a mais solitária de todas as artes. Refiro-me aos devaneios do médico como caminhante solitário. Ele deseja estar com os que ele deseja ajudar, e produz solilóquios e monólogos inconclusivos sobre o que faz e o que deixa de fazer. Que eu tenha testemunhado essa relação não vem sendo parte de nenhuma biografia ou investigação instigante. Mas, a despeito dessa negligência, ou exatamente por ela, as reflexões subjetivas dessa práxis deveriam merecer mais atenção dos pesquisadores e da opinião pública, não exatamente pela relação entre o médico e seu paciente -- em suas muitas conotações -- mas muito mais pela quietude misteriosa com que todo ato de cuidar deve estar revestido.

O papel da medicina talvez tenha uma amplitude maior do que fazer interferências sobre doenças conhecidas. Existem estados clínicos de difícil classificação: são funções alteradas, sensibilidades em desassossego, ritmos deprimidos e perturbações orgânicas e psíquicas sem resultados laboratoriais conclusivos. Diante desse quadro contemporâneo, qual será a saída? Como escapar do abuso da automedicação, das doses progressivas de antidepressivos? Como evitar os apelos diários ás soluções simplistas? Quais pesquisas são prioritárias, e como acessar informações confiáveis? Há alguma forma de se equilibrar na instável balança da saúde, que oscila entre fatores de risco e proteção? Talvez não haja resposta satisfatória, mas uma coisa é certa: não bastam medicamentos eficazes, tecnociência aplicada ou procedimentos hospitalares sofisticados. Os médicos deverão se preocupar cada vez mais em saber diferenciar as pessoas do que agrupa-las em tipologias. Eis as raízes do Ethos do cuidado. É nesse espaço, território ou lugar que um novo tipo de arte medica para além do ultrapassado conflito entre  Medicina standard e Integrativa pode se desenvolver. Deixou de ser utopia, já que a novíssima Medicina Comporta uma ideia das mais práticas: qualquer ação terapêutica deve ser baseada em cuidados pensados para cada um.

Não é incomum ouvir falar sobre as crises da Medicina. Mas, por mais que as investigue, não as detecto, pelo menos não como um drama insinuado, crise de consciência ou esgotamento do modelo científico sobre o qual ela se apoia. Ao contrário, sua hegemonia é cada vez mais sólida e abrangente. Pois, então, onde é que ela, a tal crise, estaria? Afirmo que não é no sucesso da razão tecnológica, pois o êxito das novas tecnologias não é só estrondoso, mas parece possuir a consistência do que é tanto definitivo como irreversível.

O regime de validação dos procedimentos da Medicina é tão extraordinário que não pode se dar ao luxo de se importar demasiadamente com as questões chamadas "menores", como, por exemplo, os conflitos de interesse que ocorrem nas publicações científicas revisadas por pares, mesmo quando não assumidos. Não é que os conflitos não estejam sendo avaliados, e muito menos que não gerem legítima preocupação, mas é que não há uma solução razoável para eles.

Publicidade

Pode gerar perplexidade, mas, sendo bem pragmáticos: um pesquisador subsidiado é, antes de tudo, um funcionário. Sua função é submeter-se a um regime que lhe pede, explicitamente ou não, prestação de contas. Ele precisa produzir para justificar seu custo na linha de produção/geração de tecnologia, daí que papers, que crescem em profusão geométrica, contra leitores que não dão conta de se atualizar, acabam sendo excedente de luxo. Vale dizer: o problema da produção científica é como uma raiz que não pode ser apropriadamente desmembrada, pois, para controlá-la, precisaríamos de núcleos de pesquisa subsidiados pelo Estado, que também teria de ser relativamente neutro e independente em suas políticas de produção e avaliação científicas. Obviamente, isso não acontece, pois, cada vez menos, os Estados são imparciais em suas políticas de pesquisas.

No caso das pesquisas em biotecnologia médica, infelizmente vale mais o desenvolvimento de uma droga cara para uma enfermidade que tem visibilidade para a opinião pública e gera dividendos políticos e não políticos - ainda que não seja tão prioritária - que medidas de caráter sócio-educativas ou técnicas substitutas/complementares que apresentam menor impacto midiático imediato.

Considerando que os pleitos eleitorais são todos eventos de curto ou curtíssimo prazo, não fica difícil deduzir para qual lado habitualmente pendem as decisões econômicas em saúde. Esse é o atual jogo jogado pelas pesquisas científicas no mundo político dos subsídios, e não adianta nada - parafraseando Ronald Laing - fingir que não vemos o jogo que eles fingem não jogar.

Como a maior parte das experiências com novos fármacos e vacinas, assim como o próprio desenvolvimento da biotecnologia encontra-se em mãos privadas, não há espaço, quiçá interesse, para ultrapassar a dimensão burocrática da discussão. Ela se torna novamente refém dos vícios que as normas antivícios tentavam, em vão, corrigir. Não se trata de entender o enredo da forma como Franz Kafka via o mundo, mas de apontar problemas que, de tão assombrosos, funcionam como pontos cegos ao próprio desenvolvimento dos debates científicos.

Na prática, isso significa que o novo, está, a priori, condenado, pelo menos com sérias chances de jamais nascer, ou de ser prematuramente asfixiado dentro dos meios institucionais. Nesse sentido, os próprios santuários da inovação, as universidades, acabam trabalhando contra si, pelo menos contra o sentido da sua permanência. Há, assim, o novo paradoxo, já que a finalidade das pesquisas - que não é necessariamente ratificadora de procedimentos institucionalizados - é mais exatamente agir contra a natureza que a criou: o surgimento do novo.

Publicidade

A título de exemplo, isso tudo pode ser mais bem observado nas políticas públicas da área cultural: o cinema independente, e qualquer atividade artística que não seja comercial, só conseguem sobreviver com apoio e retaguarda do Estado. Isso induz, pelo menos, a dois tipos de sínteses duvidosas: as denúncias que abusam de generalizações simplistas e abstratas, como condenar o "sistema" pelo estado de coisas, e outra, não menos comprometida, de fazer a defesa do alinhamento automático com o status quo. Isso significa, na prática, certa inércia diante dos tabuleiros viciados.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Pode ser que nada de melhor tenha sido inventado, e que as normas e metodologias que aí estão, apesar de extremamente problemáticas, ainda sejam as menos absurdas. Mas será que sob elas aflorariam as revoluções científicas e, portanto, o próprio desenvolvimento científico e tecnológico? Não poderíamos responder, mas o problema apontado acima continua sem solução, já que o estruturalismo sobre o qual se apóia a produção científica mundial permanece renegando sistematicamente sua vocação fundamental.

A próxima pergunta seria saber se, mesmo nesse ciclo involuntário, que bloqueia toda perspectiva de disruptura, poder-se-ia esperar uma mudança significativa na práxis médica, por exemplo.  Colocando de outro modo: como esperar, diante desse cenário, horizontes renovados? Como acreditar na indução de uma novíssima Medicina? Se dependêssemos da produção científica canônica e do aparato instrumental das publicações, do jeito como estão concebidas, jamais alcançaríamos a ousadia. As chances, as boas chances, estão nos lugares que estão fora do mainstream hegemônico. Tais áreas de escape são territórios não completamente mapeados. São continentes desconhecidos que fazem surgir pressões necessárias para a renovação, malgrado seguem correndo por fora. Há, contudo, uma chave para que se possa compreender melhor a força dessas regiões excluídas: as pessoas.

São pessoas que desejam que a Medicina tenha um sentido e uma direção muito diferentes das feições até aqui assumidas. É desse espaço, sem latitude ou longitude definidas, que estão surgindo insatisfações, desconfortos, de qualquer forma uma espécie de mal-estar benévolo, que instiga e fomenta as mudanças. Foi por causa dessa maioria, até há pouco silenciosa, que começou-se a falar de "Medicina baseada em narrativas", de "Medicina centrada no paciente", "da Medicina do sujeito".

São pacientes com suas demandas, suas necessidades de se fazer ouvir, de expressar interpretações de suas biografias junto às queixas clínicas. De avaliar seus próprios estados clínicos. São narrativas com detalhes que mostram a singularidade dos contextos de cada sujeito, o clamor não verbalizado por solidariedade. A busca por pessoas que cuidem. O desejo forte de que o diálogo com os médicos não esteja restrito a meras construções discursivas científicas. O compartilhamento honesto sobre as dúvidas, proteção e riscos atrás de cada intervenção. A atenção focada no que é vital em saúde mais do que na patologia propriamente dita. A qualidade da existência como critério de sucesso mais importante. Todas essas aspirações crescem, mesmo numa sociedade saturada por informações filtradas pelo jornalismo científico, ditadas de acordo com o humor das redações ou articulações políticas urdidas nos corredores.

Publicidade

É desse ponto que as Medicinas integrativas, incluindo muitas Medicinas Tradicionais  poderia induzir uma renovação da atitude dos pesquisadores para pode fazer renascer o pendor natural que a ciência tem pelo desafio. Desafio que age contra duas forças contemporâneas que enganam com um embate pré-dialético: cientificismo versus rigor doutrinário.

Um desafio que pode fazer romper a excessiva -- e até certo ponto nociva -- dependência que temos hoje da tecnociência. Um desafio que recusa o descarte do ultrapassado. Pode ser um novíssimo que agrupe idéias já rastreadas, ressurgimento de pesquisas em desuso, retomada da velha fórmula da Medicina hipocrática baseada em observação e em rituais empíricos. Pode ser repensar as categorias propostas por Samuel Hahnemann que, mesmo bem posicionado entre os homens da sua época, insistiu em afirmar sua resistência, sempre um caminho mais difícil que desfrutar das facilidades da correnteza.

O resultado prático de não se deixa levar pela torrente de sensos comuns instalados na mente do velho continente acerca dos conceitos de doença e tratamentos foi descolar-se da média e anunciar o inédito, pois não se tratava só de apreender totalidades, mas de observar, analisar e medicar sujeitos particulares; entes com sofrimentos difusos extremamente pessoais. Decerto Hahnemann desejou uma Medicina com características muito distintas daquela que conheceu. Percebeu que qualquer novíssimo requer permanente abertura intelectual para reinterpretar bibliografias canônicas, inclusive as por ele produzidas.

Lá no século XIX, e no aqui e agora, dá-se exatamente o mesmo. Os médicos contemporâneos, assim como os dos séculos precedentes, podem facilmente dar de ombros para a força desse empreendimento. Mesmo assim a dimensão arte na prática clínica é incrivelmente teimosa. Há os que evocam as evidências para bloquear qualquer repensar da filosofia clínica. Mas, mesmo diante da progressiva escassez de defensores dentro das artes médicas, sobrevive, com algum vigor, o contra-pensamento. Porém, dessa vez, há o detalhe da inversão: os que estão sussurrando encontram-se fora das fileiras médicas.

Pensemos juntos, então, da seguinte forma: uma nova Medicina nada recusaria a priori, já que compreende, diante da vastidão do mal-estar contemporâneo, que não se pode dar a esse luxo. Aceita o que parece ser o mais racional, o menos invasivo, e o mais de acordo com uma economia humana baseada no conhecimento da vitalidade.

Publicidade

A novíssima Medicina abraça a necessidade de incorporar as ciências humanas às naturais, reinaugurando uma interlocução dispersa no tempo. Embalada pelo terceiro princípio hipocrático, essa Medicina só pode ser aquela que mais convém a cada um.

*Novíssima Medicina, Editora Organon, 2008

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.