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Crônica, política e derivações

Resenha de "Céu Subterrâneo" Por Lyslei Nascimento - Arquivo Maaravi - Revista Digital - UFMG

Por Paulo Rosenbaum
Atualização:

ROSENBAUM, Paulo. Ce?u subterra?neo. Sa?o Paulo: Perspectiva, 2016. 254p. Da escrita e da arqueologia, modernidade em rui?nas Lyslei Nascimento*

O romance Ce?u subterra?neo, de Paulo Rosenbaum, surge em um tempo em que o leitor ja? na?o cultiva o que na?o pode ser abreviado. No entanto, amante das grandes narrativas, como se pode constatar desde A verdade lanc?ada ao solo, de 2010, o escritor, ao tentar realizar uma si?ntese impossi?vel do ce?u - as coisas do alto, como a espiritualidade - e as subterra?neas - na?o somente as coisas terrenas, mas aquelas que estariam abaixo ni?vel do cha?o, como a memo?ria e a identidade - inscreve-se numa poderosa tradic?a?o de romancistas como Umberto Eco e Salman Rushdie.

Esses escritores se esmeram em construir suas tramas a partir do que Italo Calvino chamou de hiperromance ou romance enciclope?dico, uma narrativa marcada pela tensa?o entre o peso e a leveza, a exatida?o e a multiplicidade. Na contrama?o do desejo de brevidade, eles oferecem ao leitor uma narrativa densa, cheia de camadas, idas e vindas, jogos temporais e espaciais, intertextos sofisticados, buscas quase infinitas de duplos e fantasmagorias, ale?m de uma concepc?a?o fundamental da literatura como conhecimento. O convite a? leitura e?, portanto, nesses autores, um desafio a? viagem, a? investigac?a?o.

Na trama de Rosenbaum, um escritor viaja para Israel em busca de si, de sua inscric?a?o numa tradic?a?o da qual ele acredita ser "desafilhado". Por isso, na?o e? so? um ponto de vista que e? sugerido pela expressa?o paradoxal "ce?u subterra?neo", mas tambe?m um jogo entre o fora e o dentro, a exclusa?o e a inclusa?o, que esta? em perspectiva. O que se percebe, nesse sentido, e? que a narrativa vai se adensando e um enigma precisa ser decifrado pelo personagem e pelo leitor, que se veem diante de um labirinto, com suas ruas e ruelas, falsas entradas e iluso?rias sai?das - tudo muito bem arquitetado para fazer perder tanto o personagem quanto o leitor. Decifrar ou ser devorado parece ser o que, irremediavelmente, impele o protagonista, "o estranho que se estranha", para o que seria a sua busca pela verdade, pela resoluc?a?o do que a ele, e ao leitor, se impo?e como um problema, real ou psicolo?gico. Inque?rito e investigac?a?o, em construc?o?es ana?logas as de Edgar

1 Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 10, n. 18, maio 2016. ISSN: 1982 3053.

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Alan Poe, a concepc?a?o do amigo Assis Beiras, faz lembrar Conan Doyle com o ce?lebre parceiro de Sherlock Holmes: um Dr. Watson tropical. Escavando e recordando, como queria Walter Benjamin, as refere?ncias a? narrativa de enigma e de investigac?a?o policial na?o sa?o gratuitas. Torna se, assim, o narrador o investigador de si mesmo, de suas origens, e o leitor o seu cu?mplice. O que Adam Mondale deseja em sua tentativa de desvendar um passado ancestral judaico e, e? preciso dizer, coletivo? Desentranhar se ou ali se inscrever, de forma singular? A sua busca de uma imagem da sepultura de Ada?o, o homem primordial, na?o e? banal ou reto?rica, mas se da? a partir de leituras e releituras, de livros, de imagens, de tradic?o?es que va?o desarmando interpretac?o?es cristalizadas e armando outras, mais preca?rias, pore?m sutis. Nesse sentido, o romance trata de coisas desaparecidas, ou soterradas, e das inexistentes, ou imagina?rias. A refere?ncia a um co?digo picto?rico, como o Jardim das deli?cias terrenas, de Hieronymus Bosch, por exemplo, e fotogra?fico, como o negativo da Polaroide encontrado e seu correspondente holograma, sa?o explorados no uso de um vocabula?rio ambi?guo, que pode ser tomado em va?rios sentidos. Desse modo, revelac?a?o, iluminac?a?o ou negativo sa?o termos que podem ser levados a?s u?ltimas conseque?ncias interpretativas. Assim, a fotografia, que poderia ser uma prova de realidade, e a busca que o narrador realiza, sa?o postas em xeque, fazendo surgir sombras ou deli?rios, tudo muito bem entretecido com reflexo?es pungentes sobre a escrita e dilemas de um escritor na contemporaneidade. Quase como um mi?stico a? deriva, ou um voyeur, numa iro?nica condic?a?o de sofrer de uma doenc?a nos olhos, cuja "co?rnea e? riscada", prejudicando lhe a visa?o perfeita, destaca se o cara?ter de colecionador de ca?meras e filmes antigos (marcando o que seria a modernidade em rui?nas) e as mu?ltiplas facetas do personagem como professor, psico?logo, foto?grafo e detetive (buscando apreender a fugidia condic?a?o do escritor po?s moderno). O texto aponta para o que, em certa medida, Ricardo Piglia afirmou sobre a escrita atual: o ge?nero policial, em todos os seus desdobramentos, e? o grande ge?nero moderno que inunda o mundo contempora?neo. Narra se uma viagem ou um crime. Que outra coisa se pode narrar? . A?s vezes, as duas coisas, e? preciso ressaltar. Sob essa dupla sentenc?a, Piglia parece refletir sobre as estrate?gias de construc?a?o textual presentes no romance de Rosenbaum. Sobreposta a? viagem a Israel, e, em Israel, a viagem a Hebron, ale?m da busca pela 2 Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 10, n. 18, maio 2016. ISSN: 1982 3053.

fotografia que desvelaria o segredo, a meta?fora da arqueologia traduz, de forma contundente, a investigac?a?o que o protagonista realiza de si e do outro, espelhando, com requinte, a estrutura narrativa do romance. A partir de um negativo fotogra?fico encontrado na Caverna dos Patriarcas, a Gruta de Macpela?, o narrador sai a campo em investigac?a?o. O complexo, localizado na antiga cidade de Hebron, depois do Monte do Templo, e? o segundo local mais sagrado para os judeus e venerado, tambe?m, por crista?os e muc?ulmanos. Todos eles, com algumas variac?o?es, afirmam que e? o lugar onde foram enterrados os quatro casais bi?blicos, dai? o nome "Macpela?" ser uma refere?ncia a? ca?mara de sepultamento desses casais, ou seja, a caverna dos tu?mulos dos casais: Ada?o e Eva; Abraa?o e Sara; Isaque e Rebeca, Jaco? e Lea. As cidades de Rosenbaum, tal qual as de Cidades invisi?veis, de Italo Calvino, aparecem especulares, refletidas, em dupla exposic?a?o, sendo atravessadas pelo narrador, com seu olhar avariado, diluindo as fronteiras, fazendo com que os limites sejam intercambia?veis. Jerusale?m e Hebron prefigurariam, assim, espac?os sagrados e profanos, espelhamentos de textos que sa?o desfolhados ou revelados em suas entranhas a partir de refere?ncias ao campo sema?ntico da fotografia, da arqueologia e da narrativa de enigma. O passado, as rui?nas, os restos mortais sa?o iluminados pela escrita e pela investigac?a?o, como uma prova, no tempo presente, de algo que so? chega a ser minimamente delineado. --"Prova? Voce? agora esta? escavando?", pergunta a esposa de Adam. --"Estamos pesquisando", ele responde. Ressalte se, nessa citac?a?o, que a pergunta se apresenta no singular, mas a resposta, apesar de so? poder ser tambe?m nesse diapasa?o, porque na?o ha?, explicitamente, outra pessoa junto a Adam, acontece no plural. Essa configurac?a?o mu?ltipla do personagem e? du?bia e esta? expli?cita em suas muitas facetas, na complexa conformac?a?o de seus va?rios eus. Ou seja, esse personagem tambe?m se apresenta a partir de "camadas arqueolo?gicas" da vida presente com as passadas, relac?o?es conflituosas com a culturas e a tradic?a?o judaica, angu?stias e influe?ncias de textos e imagens que leu e escreveu ou fotografou. Evidentemente que a ideia de duplo, presente desde o ti?tulo do romance, tem, no nome do narrador, Adam, espelhando sua busca por Ada?o, e Macpela?, o nome da gruta que sugere o tu?mulo dos casais, ale?m das cidades de Hebron e Jerusale?m - 3 Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 10, n. 18, maio 2016. ISSN: 1982 3053.

com suas rui?nas e reconstruc?o?es trazidas a? luz, por escavac?o?es - na arqueologia, sua meta?fora mais instigante. Por interme?dio da comparac?a?o do passado de uma cidade com o passado psi?quico, Sigmund Freud, em O mal estar na cultura, reflete sobre o que o leitor pode analogamente vislumbrar na busca de Adam em Ce?u subterra?neo. Em vez de Roma, a cidade que insurge e ressurge do passado e? Hebron, fazendo falar, a um so? tempo, as vozes da tradic?a?o - de um tempo imemorial e mi?tico, que parece estar soterrado no passado - com i?ndices do moderno e da contemporaneidade, como a fotografia, a computac?a?o gra?fica, o holograma. Ce?u subterra?neo, em ni?veis e desni?veis, em estratos, espelhamentos, conformac?o?es e deformac?o?es, anseia que o leitor o atravesse, pari passu com o narrador. A busca obsessiva de Adam "pelo negativo" de uma imagem que todos julgam perdida, no entanto, na?o e? va?. O leitor devera? acompanha? lo por cidades e grutas, da superfi?cie para o interior, num espac?o labiri?ntico. Sem esquecer, todavia, que escavar se e?, tambe?m, ferir se, e que quanto mais profunda a incursa?o na memo?ria ancestral, mais ele pode se elevar, para, na superfi?cie, respirar e sobreviver. * Lyslei Nascimento e? Professora Associada na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, coordenadora do Nu?cleo de Estudos Judaicos e bolsista de produtividade do CNPQ.

4 Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 10, n. 18, maio 2016. ISSN: 1982 3053.

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