A suástica e a foice e o martelo

Seria legítimo proibir a exibição de símbolos que evocam determinadas ideologias consideradas por demais repugnantes, ou, ao contrário, pouco importa o conteúdo, símbolos, sendo uma modalidade de expressão, haverão de ser livremente exibidos, caso haja esse desejo? Se houver essa legitimidade e, a partir dela, uma diferenciação entre símbolos legais e ilegais, quando um for proibido, como justificar que outros não o sejam? Se for proibida a suástica, como justificar que a foice e o martelo também não o seja?

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Por Geraldo Miniuci
Atualização:

Símbolos representam uma forma de expressão de um valor, de um acontecimento histórico, de um ideal, de uma religião, de um time de futebol, enfim, de tudo aquilo que uma determinada comunidade, numa determinada época, considera digno de ser simbolizado. Por isso, símbolos não possuem significados em si mesmos, que sejam independentes de contexto. Ao contrário, esses significados são atribuições feitas pela comunidade, que poderá, ao longo do tempo, alterá-los ou simplesmente transformar o objeto simbolizado em peça histórica ou lixo. O crucifixo, por exemplo, pode representar o perdão e a tolerância do cristianismo ou a opressão e a intolerância da Santa Inquisição; a estátua de Borba Gato, em São Paulo, evoca tanto a história dos bandeirantes, como a violência das bandeiras, em especial de um homem que, após matar um fidalgo, fugiu e viveu foragido por muitos anos, até comprar o seu perdão com minas de ouro que descobrira.

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Nesse mosaico de significados e de símbolos, seria legítimo proibir a exibição de um deles, por evocar ideologias repugnantes? Qual norma fundamentaria essa proibição? De qual ordenamento? Na Alemanha, símbolos nazistas são proibidos, mas, nos Estados Unidos, a bandeira confederada, símbolo do sul escravocrata, pode ser livremente exposta, comercializada, homenageada ou utilizada como estandarte de movimentos racistas de supremacia branca. Haveria mais liberdade nos Estados Unidos do que na Alemanha? Para os neonazistas e a extrema direita, sim, sem dúvida, mas impedir legalmente manifestações de intolerância, como se impede na Alemanha, que negam dignidade a um grupo social, isso não chega a comprometer propriamente a liberdade, nem mesmo a entrar em contradição com ela, ao contrário, pois não há contradição maior do que tolerar a intolerância. Afinal, sob uma perspectiva contratualista, se todos os membros de uma determinada sociedade considerarem-se partes iguais de um contrato social, que rege uma ordem fundada na democracia e na tolerância, não será possível admitir, sem violar o contrato, que alguns membros, partes do acordo, tenham o direito de não reconhecer certos sujeitos, igualmente partes, como credores de respeito e de reconhecimento,

No ordenamento político, jurídico e social de uma sociedade democrática, todos têm o dever de tolerar o diferente, e nenhum direito de ser intolerante. Preconceitos devem ser combatidos em todas as frentes possíveis. Por isso, o que contraria esse ordenamento não é a proibição de símbolos que representam propostas calcadas na intolerância, mas a sua permissão e a permissão de se fazer apologia do ódio, da violência e da destruição de uma sociedade democrática e inclusiva.

E eis aqui a principal diferença entre a suástica e a foice e o martelo: enquanto o símbolo nazista representa uma ideologia impregnada de antissemitismo e de exclusão, amplamente admitidos e expressos, inclusive, no programa do Partido Nacional-Socialista do Trabalhador Alemão, a foice e o martelo representam um outro tipo de programa político, em cujo conteúdo não consta a exclusão de nenhum grupo social. Pode-se não concordar com as propostas socialistas, seja porque se prefere o liberalismo e as leis do mercado, seja porque se é socialdemocrata, mas a ninguém será dado negar a legitimidade de um programa que não viola a dignidade humana. Propor a abolição da propriedade dos meios de produção e a instituição de cooperativas administradas pelos próprios trabalhadores pode esbarrar em forte e legítima oposição política, mas isso não será como propor que os judeus percam a nacionalidade alemã e passem a ser tratados como estrangeiros. Ao contrário da vida e da dignidade, a propriedade não é um direito fundamental do ser humano. É possível viver sem ela, ou porque não se pôde comprar uma ou simplesmente porque se julgou mais vantajoso não ter propriedades do que as ter.

As graves violações de direitos humanos cometidas em países socialistas não retiram a legitimidade das propostas de esquerda, da mesma forma como a violência da Santa Inquisição não invalida os ensinamentos do cristianismo, nem as ditaduras capitalistas, o capitalismo. Se o socialismo tem ou não cabimento como ideia, isso pode ser discutido. O que não cabe ser sequer tematizado, numa sociedade democrática e inclusiva, é a exclusão e discriminação de grupos sociais, em razão de sua identidade racial, étnica, religiosa ou de orientação sexual. Por isso, nada há de contraditório entre proibir o uso da suástica, mas aceitar o da foice e o martelo, pois, de um lado, não se tolera a intolerância, mas, de outro, temos o dever de tolerar o diferente, seja esse diferente uma pessoa ou uma ideia que não viole a dignidade humana.

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