PUBLICIDADE

Borba Gato em chamas: e a história?

Como avaliar o ataque à estátua de Borba Gato, ocorrido no último sábado, no bairro de Santo Amaro, em São Paulo? Afinal, monumentos como aquele são instrumentos para contar a história, servem para evocar um passado e contribuir para a criação de uma memória coletiva. Faria sentido destruí-lo?

Por Geraldo Miniuci
Atualização:

Manuel Borba Gato foi um bandeirante paulista, que teria vivido entre 1649 e 1718. Como se sabe, bandeirante é a denominação dada aos que integravam as "bandeiras", expedições organizadas com a finalidade de descobrir minas de ouro, prata e pedras preciosas. Como parte da bandeira organizada por Fernão Dias Paes, seu sogro, que ficou conhecido como caçador das esmeraldas, Borba Gato entrou para a história como homem que desbravou sertões e encontrou riquezas. Há, porém, outros dados biográficos: além de expandir territórios e descobrir jazidas de metais preciosos, Borba Gato também caçava índios para escravizá-los e capturava escravos foragidos. Acrescente-se ainda a acusação de ter assassinado um homem que estava a serviço do império português. O assassinato não decorreu de nenhum ato de rebeldia, em prol de alguma nobre causa contra um opressor. Ao contrário. Fernão Dias Paes havia morrido, mas deixara acertado com seu filho mais velho, Garcia Rodrigues Paes, que todas as pedras preciosas encontradas numa expedição realizada em 1674 deveriam ser entregues ao ourives real. Borba Gato não concordou com a entrega feita; no ano seguinte, o homem a serviço dos portugueses foi encontrado morto, e Borba Gato, acusado de ser o assassino.

PUBLICIDADE

O destemido bandeirante fugiu para o sertão, onde passou 17 anos escondido nas matas, em busca de ouro, ao mesmo tempo em que desbravava a natureza. Foi quando encontrou veios de ouro nas minas de Sabará, em Minas Gerais. Com as autoridades competentes, Borba Gato negociou, em troca da localização da jazida, seu perdão pelo crime. Perdoado, conseguiu, ainda, ser promovido para o cargo de Tenente-General do Mato; ser nomeado superintendente das minas de ouro, além de ficar responsável pela divisão das lavras de ouro, pelo envio de impostos para a coroa portuguesa e pela administração da justiça em Sabará.

Eis, em síntese, Borba Gato: um homem que, além de caçador de índios e negros e acusado de assassinato, desbravou o sertão, expandiu fronteiras e encontrou riquezas. Como se vê, nos termos de um linguajar corrente no mundo corporativo dos dias de hoje, trata-se de uma história de empreendedorismo bem-sucedido, que deu início ao apogeu do ciclo do ouro, com o enriquecimento de Sabará e seus habitantes.

A estátua em Santo Amaro foi ali colocada para representar apenas uma parte dessa história: a pessoa do desbravador, ignorando a pessoa do assassino e do escravocrata, mais ainda, ignorando também suas vítimas, ignorando o custo humano de tanto empreendedorismo.

Costuma-se dizer, para perdoar os pecados de Borba Gato, que seu tempo fora outro, que não cabe a nós, do séc. XXI, julgar alguém do séc. XVII. Sem dúvida que não, mas, aceitar que haja exclusivamente uma estátua daquele bandeirante, com a intenção de glorificá-lo, de enaltecer sua coragem e seu espírito desbravador, isso também é fazer um julgamento da história, positivo, sim, mas um julgamento como aquele feito por quem deseja destruir a estátua, um julgamento sobre fatos do séc. XVII, feitos por observadores do séc. XXI.

Publicidade

Talvez o principal problema não esteja no monumento, em si, mas no que lhe falta, no que a ele deva ser agregado, para que se represente o tempo dos bandeirantes de modo fidedigno, sobretudo porque as consequências das ações contra índios e negros naqueles dias se estendem até hoje; afinal, não se trata de uma escravidão ocorrida há milênios, mas há menos de 500 anos, num país onde não há rupturas entre uma situação e outra, onde sequer a independência foi uma ruptura, onde o que existe são acomodações, em que o passado se adapta ao presente e se estende pelo futuro, dando-se sempre um jeito em tudo.

A história não se ensina somente na escola, mas nas ruas também, e monumentos, além de decorarem, têm esta finalidade, evocar o passado no espaço público do presente e mantê-lo vivo na memória das pessoas. Se for para preservá-la e assegurar-lhe um sentido, a estátua de Borba Gato deve fazer parte de um monumento maior, que ainda precisa ser construído. Será necessário contextualizar Borba Gato. Ignorar certos aspectos do bandeirismo, com a intenção de passar boa imagem dos bandeirantes, isso é doutrinação, que ensina superficialmente apenas um dos lados da história, contada como se fosse ficção, referindo-se a personagem que, na realidade, nunca existiu: um tipo destemido, desbravador, que, com seu trabuco, muito conquistou, sem que outros personagens tivessem participado dessa conquista ou sucumbido no caminho.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.