Da delação à desocupação: perdemos a capacidade de deliberar sobre tortura?

Rafael Mafei Rabelo Queiroz*

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Por Rafael Mafei Rabelo Queiroz
Atualização:

 

 Foto: Estadão

 

No primeiro semestre deste ano de 2016, ofereci uma disciplina eletiva sobre tortura na graduação da Faculdade de Direito da USP. O propósito do curso não era estudar ou condenar a tortura que sabemos ser errada, como a tortura investigativa para a obtenção de confissões. Interessava-me, ao contrário, estudar um conjunto de práticas contemporâneas que, ao contrário da tortura de sempre, são praticadas abertamente e defendidas por quem a elas recorre. Elas se parecem com velha tortura sob alguns aspectos, ao mesmo tempo em que são muito diferentes em outros.

 

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No Brasil, meu objeto principal de interesse eram as delações premiadas. Foram denunciadas como tortura por defensores dos réus na Lava Jato, mas a crítica não pegou. Elio Gaspari sintetizou a opinião predominante: tortura era o que se fazia no DOI-CODI, não em Curitiba. Isso é verdade, mas a mim uma dúvida permanecia: ainda que tortura não seja, as razões que nos levam a rejeitar a tortura não poderiam levar a juízos condenatórios sobre a prisão para delatar? A verdadeira pergunta, notem bem, é diferente daquela que se fez à época: não se trata de saber se a estratégia de combinar prisão e delação constitui tortura, mas sim de saber se ela não é errada pelas mesmas razões que a tortura seria.

 

Ainda nas delações, havia, e há, outra coisa a me incomodar: a amplitude de investigações sobre esposas, filhos e filhas dos principais acusados. No direito penal empresarial, a jurisprudência sempre caminhou firme no sentido de distinguir a culpabilidade individual dentro das relações familiares. Hoje, vendo esposas, filhas e filhos investigados e denunciados, sinto-me de volta aos tempos da responsabilidade penal por clãs. Há tempos me pergunto se essa ameaça à parentela próxima não serve também para quebrar a resistência do acusado principal, que resistiria ao seu martírio próprio mas não admitiria que a esposa ou os filhos passassem por uma fração dele. Isso é tortura? Se tortura, como diz Elio Gaspari, é DOI-CODI, então não seria. Mas a questão permanece: isso, que não é tortura, não seria errado pelas mesmas razões que a tortura também é? Convém investigar.

 

A polêmica existe em nível transnacional. Pensemos nas práticas atuais de boa parte das democracias ocidentais no contexto da "Guerra ao Terror". Não falo dos maus tratos contra presos praticados por soldados em notórios atos de desviou ou abusos, pois esses não se pretendem justificados: quando vêm à tona, os responsáveis são punidos e suas condutas são repudiadas. Falo das práticas que são confessadas, como as prisões para investigação sem prazo e sem controle judicial; as "técnicas avançadas de interrogatório"; a alimentação à força; a privação de sono e outras condutas que são defendidas como estando de acordo com os direitos dessas democracias, que invariavelmente proíbem a tortura.

 

Desde a emergência da "Guerra ao Terror", acadêmicos estrangeiros identificaram o problema dajustificação dessas novas práticas de investigação e punição. Hoje, há farta bibliografia sobre isso, notadamente de língua inglesa. Nós, ao contrário, escolhemos permanecer na ignorância aconchegante: convencemo-nos de que tudo não passa de uma polêmica de dicionário, uma querela semântica sobre o vocábulo "tortura".

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A sentença que determinou as desocupações de escolas sob ameaça de privação de sono por meio de ruídos contínuos em volume insuportável serve para nos acordar dessa preguiça deliberativa. Tenho certeza que a sentença foi prolatada de boa-fé. Tenho certeza que ela expressa o melhor entendimento do juízo sobre as questões jurídicas pertinentes. Tenho certeza que a pessoa que a redigiu não ignora que tortura seja proibida no Brasil. Sendo alguém de cultura acima da média, como juízes normalmente são, estou certo de que não ignora que privação de sono é uma modalidade elementar de tortura psicológica.

 

Como a decisão se explica então? Provavelmente, ela é indicativa de nossa incapacidade atual de deliberar sobre a tortura (e as práticas a ela assemelhadas) e os princípios jurídicos pertinentes.

 

Onde perdemos esse fio da meada? Ofereço três hipóteses.

 

Em primeiro lugar, na equivocada sensação de que a reprovabilidade da tortura, em todas as suas formas, seja uma verdade inconteste dentro do mundo do direito. Essa falsa certeza nos levou a abrir mão da reflexão jurídica e moral a seu respeito, que é rica e polêmica.

 

Em segundo lugar, na suposição de que todos os direitos são abertos à relativização, bastando o apelo à retórica das "situações extremas" - que, diga-se de passagem, jamais incluiria o caso de uma ocupação de escola. Por esse prisma, a proibição da totura, e de práticas a ela assemelhadas, seriam relativas.

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Em terceiro lugar, por um dado circunstancial do nosso presente: como já houve "Guerra às Drogas" e hoje há a "Guerra ao Terror", vivemos, no Brasil, a percepção de que travamos outras guerras, a principal das quais seria a "Guerra à Corrupção". Guerras são convidativas a respostas extremas, ainda mais em um cenário de relativismo jurídico e moral.

 

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Se não quiserem que o saber jurídico se perca em um palavrório inútil, em brocardos lançados ao vento e nos chavões de sempre, os juristas precisam reaprender a deliberar sobre tortura, no amplo sentido de que aqui falo. O truísmo de que "tortura é sempre errada" e que "tortura é o que se fazia no DOI-CODI" não dá mais conta das complexidades do presente. Precisamos reabrir a discussão sobre o que é tortura - tanto o conceito focal, quanto seus semelhantes de família (os filósofos entenderão); sobre por que ela é errada; e sobre como o direito deve responder às práticas estatais que, se não são tortura, parecem-se perigosamente com ela.

 

A quem quiser começar, recomendo a leitura do livro que debati com minhas alunas e meus alunos na disciplina que mencionei: Torture and Moral Integrity, de Matthew Kramer (Oxford University Press, 2014). O livro é excelente e instigante, embora seja uma leitura difícil. No programa da disciplina, disponível aqui, há indicações de outros textos de leituras complementares.

 

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* É professor da Faculdade de Direito da USP.

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