Idibal Pivetta, advogado nos tempos do cólera

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Por Rafael Mafei Rabelo Queiroz
Atualização:

Não, não, o Metablog não morreu. Só estava de licença paternidade. Dupla. Com dois filhos nas fraldas, o mais novo cheio de cólicas e o mais velho alternando tentativas de lamber as tomadas e incendiar a residência, além das aulas, reuniões, pesquisas e afins, não há bloqueiro que aguente. A indústria farmacêutica, imediatista que só ela, dá preferência aos prazeres da carne e o Viagra acadêmico ainda está por ser inventado, infelizmente. Até lá, os posts virão a contagotas. Neste texto, retomo um assunto passado e repassado no Metablog - OAB e advogados - mas agora em outro tom, porque referente a outra época: os anos de chumbo.

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O conhecimento difundido sobre os conflitos políticos durante a ditadura militar foca-se majoritariamente na luta violenta: as prisões arbitrárias, as torturas, as mortes em celas de quartéis e os desaparecimentos, por parte dos militares e policiais civis; por parte dos grupos paramilitares (de esquerda, de direita ou de quem pagasse mais, como o Esquadrão da Morte), mortes, roubos e sequestros. Esses conflitos se deram à margem do direito. Mais do que desrespeitá-lo, ignoram que também o direito é um campo de embates e batalhas políticas, travadas sob formas jurídicas, em busca de poder. Desde a Reforma Papal de Gregório VII, no século XI, não tenho conhecimento de nenhum projeto de hegemonia política que tenha obtido êxito sem controlar o direito - seus personagens, suas instituições, sua interpretação.

Será que não teria havido também na ditatura militar brasileira uma luta pelo direito, nos ambos sentidos possíveis da expressão (through the law; for the law)? Sem dúvida houve. O regime militar teve juristas de convicção, e também de ocasião, construindo teses e documentos convenientes para sua luta de "superação de antagonismos", como se dizia então. Tais antagonismos eram muitas vezes jurídicos: vinham das práticas, da jurisprudência, da Constituição e das leis. Sendo assim, havia sempre um operador do direito de cada lado do cabo de guerra, embora puxassem com forças desproporcionalmente desequilibradas, cabendo toda vantagem aos que acharam aconchego nas entranhas da ditadura.

A justificativa teórico-jurídica do golpe, expressa no preâmbulo do Ato Institucional (que era único e depois virou AI-1) foi escrita por um jurista (Francisco Campos, Chico Ciência). A do AI-2, idem. O AI-5 foi redigido e defendido por um professor da São Francisco, Gama e Silva, o "Gaminha", que pouco tempo antes abrira, quando retitor da USP, o IPM que perseguiu 44 colegas seus, de outras faculdades, sob acusação de subversão. Eram jurídicas as discussões sobre a competência da justiça militar para processar e julgar crimes políticos, sobre o direito de obtenção de passaportes por brasileiros exilados, sobre a atipicidade da conduta de quem rouba um cofre "vazio" de onde se tiram alguns milhões de dólares - vide a defesa dos acusados do roubo ao cofre do Adhemar (de Barros). O STF, a despeito das aposentadorias compulsórias e alterações arbitrárias no número de ministros, tinha muitas vezes posições de altivez contra o regime, expressas em votos célebres, como o do HC que mandou soltar Miguel Arraes poucos dias após o golpe (a íntegra do acórdão está no link).

Em meio a essas disputas havia, claro, advogados. Um dos mais célebres foi Idibal Pivetta, que tive a felicidade de entrevistar em um projeto de pesquisa no qual estou trabalhando juntamente com colegas professores do Rio de Janeiro e Porto Alegre, com apoio da Comissão de Anistia e da FGV. Pivetta, que também é conhecido como César Vieira, nome que adotou na sua vida artística - é dramaturgo, até hoje - para fugir da censura, defendeu, em suas contas, perto de mil acusados de crimes políticos perante a auditoria militar do II Exército, em SP.

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Foi preso meia dúzia de vezes, numa delas ficando 90 dias numa cela do DOI-Codi, na Rua Tutóia, onde, segundo ele, quem não era morto era torturado. Foi espancado por seus algozes dentro de uma Veraneio durante todo o caminho do local de sua prisão, no bairro de Pinheiros, até a Zona Sul, onde ficava a masmorra mais célebre do regime em São Paulo. "Pegamos esse advogado filha da puta", comemoraram. Ficou 40 dias incomunicável, passando por interrogatórios que duravam mais de 12 horas seguidas, encapuzado, sem poder sentar, comer, beber água ou usar o banheiro. Pivetta, corinthiano fanático com pinta de atleta, tem problemas ortopédicos até hoje em razão dessas sessões. Só conseguiu ser acessado após muita inistência de um conselheiro da OAB à época, José Carlos Dias (a quem também entrevistei recentemente, aliás).

Após essa longa prisão, foi processado por crime contra a segurança nacional, sob a acusação de promover a união das esquerdas no Brasil. Dado que defendia todo tipo de preso político - só em seguida ao congresso da UNE em Ibiúna, onde 920 estudantes foram presos, defendeu por volta de 600 - seu escritório vivia, de fato, cheio de "antagonistas" na antessala de reunião. Daí a promover a união das esquerdas iam léguas: foi absolvido, tanto na Auditoria Militar de São Paulo quanto no STM.

Seguindo sua absolvição, a OAB paulista promoveu-lhe um desagravo. Na ocasião, leu um famoso discurso, que depois foi mimeografado e distribuído, em 800 exemplares, pelo Centro Acadêmico XI de Agosto, de quem Idibal, apesar de pucano, era próximo. O discurso, cuja cópia disponibilizo (com autorização dele, claro) no link acima é memorável especialmente pelas circunstâncias em que foi proferido: no auditório em que foi realizado, na antiga sede da OAB no centro de São Paulo, estavam presentes, segundo seus relatos, mais gente "dos caras" (i.e., agentes da repressão) do que advogados.

Leiam o discurso e imaginem um sujeito há pouco saído do DOI-Codi, onde fora covardemente espancado, cuja namorada fugira do Brasil para não ser presa e perseguida, cujo escritório de advocacia - situado em frente à Justiça Militar, na Brigadeiro Luiz António, para facilitar a logística das defesas - fora invadido n vezes, cujos telefones eram grampeados e cujos sócios (Idibal, Airton Vieira, Paulo Gerab) eram seguidos dioturnamente, imaginem, enfim, todo esse histórico e ele falando o que ali está escrito, numa época em que o pau cantava para cima dos dissidentes e todo mundo sabia.

Face a face com um sem número de agentes da repressão que lotavam a sala da OAB, frise-se.

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Um bom retrato da advocacia nos tempos do cólera, como definiu o próprio Idibal.

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