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Injúria racial e responsabilidade coletiva

O episódio das manifestações racistas provenientes da torcida do Grêmio contra o goleiro Aranha, do Santos, ocorrido no último dia 28 de agosto, na Arena Grêmio, em Porto Alegre, enseja, tanto no plano moral, como no jurídico, dois tipos de responsabilidades: de um lado, temos a responsabilidade individual da torcedora Patrícia Moreira da Silva, flagrada pelas câmeras de televisão xingando o jogador santista de "macaco". Do ponto de vista moral, a moça violou regras básicas que têm como mandamento de validade universal não ofender pessoas; do ponto de vista jurídico, ela teria praticado crime de injúria racial, estando sujeita a pena de reclusão de um a três anos e multa. Além da responsabilidade penal, a jovem pode ainda ser condenada, no plano civil, a indenizar o goleiro por danos morais.

Por Geraldo Miniuci
Atualização:

De outro lado, porém, existe um tipo de responsabilidade que recai sobre os ombros não deste ou daquele indivíduo considerado, mas de uma coletividade de pessoas anônimas, que se encontram juntas por algum motivo, seja porque compartilham o mesmo sistema de crenças, no caso das coletividades religiosas, seja porque compartilham a mesma origem étnica, racial ou nacional, seja porque torcem pelo mesmo time de futebol. A responsabilidade da geração de hoje pela geração de amanhã, refletida no princípio do desenvolvimento sustentável, a responsabilidade de grupos religiosos pela homofobia ou, no passado, a responsabilidade de grupos arianos pelo antissemitismo são alguns exemplos de responsabilidade coletiva.

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Essas coletividades não são a mera soma de pessoas individualmente consideradas. Muito mais do que isso, elas formam um "nós", pouco importando quantos ou quem são seus membros, desde que haja mais alguém, além do "eu". Não é, portanto, a soma de pessoas individualmente determinadas, mas o conjunto indeterminado de pessoas que formam um grupo capaz de persistir no tempo, mesmo depois da morte ou do afastamento de seus integrantes. Assim, ainda que uma torcida de futebol perca ou ganhe adeptos, o "nós" não desaparece, nem se transfigura.

Quando houver uma coletividade, qualquer um que dela faça parte poderá agir como seu representante, falando "nós". Se considerarmos, por exemplo, um grupo de torcedores que, em coro, grita "macaco" para algum jogador negro do time adversário, qualquer indivíduo que seja membro desse grupo e que participe dessa ação poderá afirmar "nós agimos" ("nós xingamos o jogador adversário"). O indivíduo aqui é parte de uma coletividade e pode, por isso, falar como seu representante; sua identidade pessoal é irrelevante, assim como são irrelevantes as identidades pessoais dos demais indivíduos que participam da ação, não importando se eles se conhecem ou não, ou os motivos que cada um tem para xingar. Importa apenas que tenham a mesma intenção de fazê-lo e que, além disso, tenham disposição de cooperar, isto é, no caso das torcidas, será necessário que entoem seus gritos ou cânticos de modo coordenado, assegurando que todos entendam o que anunciam.

Sob essa perspectiva, Patrícia Moreira da Silva poderia dizer "nós, que chamamos o goleiro Aranha de macaco", e falar assim como representante de uma torcida formada por pessoas que, como ela, xingavam o jogador adversário. Foi preciso que vozes, de forma espontânea, se coordenassem e produzissem os gritos de "macaco" que chegaram aos ouvidos de Aranha; do contrário, fosse apenas a torcedora a gritar, poucos a ouviriam e ela dificilmente chamaria a atenção das câmeras de televisão e dos holofotes que agora não a largam mais.

Sem dúvida, nem todos os gremistas são racistas, e nem todos os racistas são gremistas, mas os gritos de "macaco" que ecoaram na Arena Grêmio e incomodaram o goleiro Aranha vieram não somente de Patrícia Moreira da Silva, como também de uma coletividade formada por gremistas anônimos que agiam de forma articulada, isto é, gritando a mesma coisa ("macaco"), ao mesmo tempo. Se são ou não maioria, seria preciso uma pesquisa para sabê-lo; o que podemos ter por certo é que essa moça que agora apedrejam não gritou sozinha, nem aprendeu sozinha a injuriar pessoas. Foi preciso uma coletividade que lhe ensinasse e estimulasse esse comportamento.

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Essa coletividade foi punida no âmbito da justiça desportiva, com a eliminação do Grêmio da Copa do Brasil. Houve recurso. Por ora, o conjunto gremista foi atingido: os torcedores, o clube e os jogadores. Isso não significa que todos sejam racistas ou capazes de proferir injúrias raciais; significa apenas que existe uma responsabilidade coletiva moral, jurídica e política por fatos que ocorrem dentro da coletividade, incluindo-se as manifestações racistas de subgrupos. Por isso, pouco importa se as injúrias foram proferidas pela maioria ou pela minoria dos torcedores; importa, sim, que elas ocorreram, foram geradas no interior de uma coletividade e sua existência depende dessa mesma coletividade que a gerou e que se revelou incapaz de impedir manifestações injuriosas.

Na esfera pública, porém, Patrícia Moreira da Silva permanece no centro das atenções, tornando-se alvo preferencial desse coletivo irado, que, covardemente, não apenas esconde sua culpa atrás da moça, como ainda deseja vê-la reclusa na cadeia, transformando-a num clássico bode expiatório. Não digo que não deva ser punida, mas a punição que merece é aquela possibilitada pela lei e executada pelo Estado, e não aquela imposta por uma coletividade que deseja execrá-la, que lhe queima a casa, que a obriga a viver sem endereço fixo, até que finalmente seja confinada numa prisão e se torne um ser socialmente inútil e oneroso para o Estado.

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