O golpe do impeachment

"Golpe de Estado" é um conceito político e não jurídico. Ele designa o conjunto de ações conduzidas por agentes do próprio Estado para depor suas lideranças e substitui-las por outras. Trata-se, em suma, de um método de sucessão governamental. Ao contrário de outros métodos, porém, como, por exemplo, as eleições presidenciais diretas, golpes não têm previsão constitucional.

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Por Geraldo Miniuci
Atualização:

Embora possa resultar na troca da chefia de Estado e esteja previsto na Constituição brasileira, o impeachment existe não como método regular de sucessão, mas como processo político que permite a destituição prematura do Presidente da República, porém, nas seguintes condições: de um lado, deve haver controle político de admissibilidade na Câmara dos Deputados, a quem cabe autorizar ou não a abertura do processo e julgamento perante o Senado Federal, sob a presidência do STF. E ao Senado, de outro lado, caberá privativamente processar e julgar o Presidente da República, punindo-o, se for o caso, com a pena de perda do cargo e inabilitação de até cinco anos.

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Não se trata, portanto, de um julgamento feito no âmbito do poder judiciário, em que os juízes devem fundamentar suas sentenças e acórdãos, tendo sempre em consideração a norma jurídica e a própria jurisprudência. Ao contrário, trata-se de um julgamento feito por legisladores que, nos termos da lei, sem que sejam obrigados a justificar-se, votarão respondendo simplesmente "sim" ou "não" à seguinte pergunta: "cometeu o acusado o crime que lhe é imputado e deve ser condenado à perda do seu cargo?" Se, ao menos, dois terços dos senadores responderem afirmativamente, o Presidente fica desde logo destituído.

Ainda que não seja legalmente exigida a motivação do "sim" ou do "não", senadores deverão justificar-se perante seu eleitorado e a opinião pública. Se apresentarem apenas argumentos de natureza política, que se refiram tão-somente a noções de interesse, conveniência e oportunidade, isso talvez convença quem, compartilhando essas mesmas noções, já esteja convencido do veredito, mas dificilmente será aceito por quem tem outros interesses e outras concepções acerca do que é conveniente e do que é oportuno.

Para assegurar a legitimidade da posição politica, torna-se necessário lançar mão do discurso jurídico. Nesse caso, em vez de apresentar razões de natureza política para destituir (ou não) o Presidente da República, justifica-se previamente o voto alegando-se que o acusado violou (ou não violou) a lei que define os crimes de responsabilidade, assim entendidos os atos do Presidente da República que atentarem contra a Constituição Federal, especialmente contra a existência da União, contra o livre exercício dos poderes e dos direitos políticos e sociais, contra a segurança interna do país, contra a probidade na administração, contra a lei orçamentária, contra a guarda e o emprego dos dinheiros públicos e contra o cumprimento das decisões judiciais.

Em semelhante contexto, em que o discurso jurídico se presta a legitimar determinada posição, há um protagonismo, na esfera pública, dos operadores do direito, que, voluntária ou involuntariamente, se veem alçados à cena política, ao lado de políticos profissionais do executivo e do legislativo, para dar seus pareceres e defender suas teses. Alguns afirmarão que sobram crimes, outros, que nem tanto, mas, não obstante o discurso jurídico, a decisão será política - e todo o protagonismo dos operadores do direito terá servido apenas para legitimar essa decisão.

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O processo de impeachment pode funcionar como a válvula de escape do sistema presidencialista brasileiro para destituir prematuramente um Presidente da República que já não conta com apoio político suficiente para governar. Sim, ele oferece a possibilidade de um golpe, que, no entanto, ao contrário do primitivismo dos golpes militares dos anos 1960-1970, não viola a ordem jurídica. O processo de impeachment permite que a ação política organizada para destituir o Presidente da República se legitime mediante um discurso técnico-jurídico, em que se afirme e reafirme que eventual condenação não se baseia noutros critérios, além dos legais. Uma decisão técnica, eis o que se dirá. Uma decisão política, eis o que será.

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