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Transgênicos e o mito da decisão técnica

Por Geraldo Miniuci
Atualização:

Os organismos geneticamente modificados (OGM) estão na ordem do dia, sendo objeto de muita polêmica. Para que possamos entender o que se passa nesse debate, não raro temperado com episódios de pura violência, será preciso considerar duas dimensões do problema: de um lado, a engenharia genética como instrumento de intervenção no ambiente; de outro, o produto da engenharia genética, os OGM, e as implicações de sua liberação comercial.

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Como instrumento de intervenção, essa tecnologia surge para atender necessidades decorrentes não da natureza do ser humano, mas da consolidação de um entendimento pelo qual desenvolvimento e crescimento econômico são sinônimos. Houve uma opção política por um determinado modo de produção e um determinado padrão de consumo, em que se valorizam eficiência, maximização de vantagens, minimização de custos, produtividade e durabilidade. Nesse contexto, torna-se uma alternativa racional lançar mão de instrumento que permita aumentar a produção agrícola, sem que seja necessário um correspondente aumento de terra, como também é igualmente racional usar uma tecnologia que possibilite o cultivo de produtos agrícolas duráveis e resistentes a mudanças climáticas, a insetos ou a herbicidas.

Por isso, os principais questionamentos voltam-se para os OGM e suas implicações. Ficam em segundo plano as questões ético-políticas que, se aprofundadas, poderiam levar a uma subversão ou revisão dos valores vigentes. Em vez delas, discutem-se questões pragmáticas, focalizando-se os aspectos técnicos necessários para a realização do modelo, dando ao debate uma roupagem especializada e hermética, acessível apenas a pessoas com determinado saber.

Sob o rótulo "assunto técnico", sujeito a "decisões técnicas", o debate se desenvolve no âmbito da biologia, da química e dos demais ramos do conhecimento exigidos pela engenharia genética, reafirmando, assim, a separação entre moral e política, de um lado, e ciências da natureza, de outro. A partir desse pressuposto, que se tornou lugar comum no pensamento, reconfirmaram-se, no âmbito da engenharia genética, o mito da neutralidade científica e, a partir dele, o da "decisão técnica", ideia orientadora do conjunto normativo que, no Brasil, dispõe sobre normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam OGM.

A construção do mito passa, em primeiro lugar, pela despersonalização das ciências naturais, isto é, procura-se separar a ciência da pessoa dos cientistas e, consequentemente, da ação política, aqui entendida como a ação orientada por noções de interesse, conveniência e oportunidade do sujeito. Há basicamente duas maneiras de cavar-se esse fosso: informalmente, na esfera pública, por exemplo, fazendo-se apenas referências à biologia ou à química e não ao biólogo ou ao químico. Mediante asserções do tipo "a biologia promete benefícios", deixa-se de lado o fato de que nenhuma das ciências naturais tem condições de prometer seja lá o que for. São as pessoas que o fazem.

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A outra maneira de cavar-se e manter-se o fosso entre ciência e política é, no ordenamento jurídico, consagrar o termo "decisão técnica", tal como feito pela legislação brasileira, ao dispor sobre as "decisões técnicas" da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que vinculam os demais órgãos e entidades da administração pública. Se decidir é optar por, pelo menos, uma dentre as alternativas disponíveis, o que significa decidir-se tecnicamente por uma alternativa, seja ela qual for? Qual a diferença entre esse tipo de decisão e uma decisão política?

Se entendermos "decisão técnica" como a "decisão tomada por técnicos", estaremos personificando a técnica, reaproximando-a da política, dando-lhe enfim um sentido. Do contrário, o termo não terá significado algum, servindo apenas para ofuscar a figura do cientista, deixando de lado que se trata de uma pessoa ligada a um determinado contexto, com suas próprias concepções de vida e noções de conveniência, oportunidade e risco.

Decisão técnica nada mais é, portanto, do que uma decisão política tomada por técnicos, que formam a maioria da CTNBio. Em seus pareceres sobre biossegurança, os especialistas relatam a situação, referindo-se aos aspectos científicos do problema, e, depois, posicionam-se sobre ele, votando a favor ou contra a liberação comercial do OGM, conforme estejam satisfeitos ou não com as pesquisas realizadas e dispostos ou não a correr riscos ainda desconhecidos. Ora, votar, estar ou não satisfeito com as experiências realizadas e estar ou não disposto a correr riscos, tudo isso diz respeito não às ciências naturais, mas aos cientistas e à sua determinação política.

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