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Memória, gente e lugares

‘Brasil: Nunca Mais’, o WikiLeaks dos anos de chumbo

Mais de 1 milhão de páginas xerocadas clandestinamente do Superior Tribunal Militar resultaram num dos documentos mais importantes da recente história brasileira

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Por Edmundo Leite
Atualização:
 Foto: Brasil: Nunca Mais e WikiLeaks

Julian Assange e seu WikiLeaks já entraram para a história com a publicação em massa de informações secretas e confidenciais (relevantes e irrelevantes) vazadas graças às facilidades tecnológicas. Com a internet, copiar dados em massa e colocá-los à disposição de milhões de pessoas é coisa que qualquer garoto hoje em dia pode fazer. Não que isso desmereça trabalho de Assange e a relevância de seu site.

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Mas imagine esse mesmo trabalho feito 25, 30 anos atrás, quando a cópia xerox em papel era a tecnologia mais avançada para a reprodução de documentos.

A despeito dessa limitação, num trabalho precursor ao do WikiLeaks, mais de 1 milhão de páginas xerocadas clandestinamente do Superior Tribunal Militar (STM), em Brasília, resultaram num dos documentos mais importantes da recente história brasileira, o livro "Brasil: Nunca Mais".

Papel x Digital

A dimensão do feito do “Brasil: Nunca Mais” pode ser vista na comparação com os números do site de Assange. Enquanto mais de uma dezena de advogados foi mobilizada para retirar os processos e outras tantas pessoas trabalharam nas outras fases e tarefas do projeto, bastou um único cabo do exército americano para retirar um volume gigantesco de informações dos arquivos do governo americano.

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Apesar do tamanho equivalente ao do 'Brasil: Nunca, Mais' os dados disponíveis no WikiLeaks consumiram apenas 30 minutos para serem enviados pelo militar ao site. O conteúdo, de 1,6 gigabyte, pode ser armazenado em 3 CDs.

 Foto: Brasil: Nunca Mais e WikiLeaks.

Lançado em 15 de julho de 1985, o livro ‘Brasil: Nunca Mais” exumava as torturas cometidas nos porões da repressão. Era o resultado de um lento trabalho de seis anos iniciado em 1979, quando o país dava os primeiros passos para o fim do regime militar.

A história desse WikiLeaks pré-internético, tocado anonimamente por voluntários e alguns profissionais recrutados, está contada em detalhes em "Olho por Olho - Os livros secretos da ditadura", livro do jornalista Lucas Figueiredo lançado no ano passado pela editora Record:

"... Em 1979, em pleno governo de um general forjado no serviço secreto, um grupo de religiosos e advogados deflagrou um projeto tão ambiciooso quanto improvável. Eles pretendiam:

1) Entrar na sala de processos do Superior Tribunal Militar (STM), um prédio cercado de seguranças;

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2) Pegar toneladas (literalmente!) de provas das atrocidades cometidas nos porões do regime;

3) Reunir tudo num livro-denúncia.

Ninguém até hoje sabe exatamente como foi possível, mas o fato é que o plano deu certo. ..."

Como escreveu Lucas Figueiredo, o plano foi ambicioso e audacioso. Começou quando a Lei da Anistia foi promulgada pelo presidente João Baptista Figueiredo, em meados de 1979. Com a medida, presos políticos, cassados, clandestinos, perseguidos, exilados e condenados por subversão tiveram retomados direitos e recondução aos antigos empregos e cargos, entre outros direitos.

"Como muitos casos de anistia requeriam medidas administrativas ou judiciais, os advogados precisavam de documentos para comprovar que seus clientes tinham sido de fatos punidos por atos de exceção baixados na ditadura. Para sorte dos advogados, grande parte desse papelório podia ser encontrada num único endereço: Brasília, Setor de Autarquias Sul, Praça dos Tribunais Superiores, edifício-sede do Superior Tribunal Militar.

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Assim que começaram a ter acesso aos processos mais cabeludos, advogados dedicados a causas de presos políticos - como Eny Raimundo Pereira Magalhães e Luiz Eduardo Greenhalgh - perceberam que estavam diante de documentos de valor histórico incalculável. Por uma estranha necessidade de legalizar seus atos (escancaradamente) ilícitos e de registrar cada decisão tomada em favor da "Revolução de 1964?, os militares brasileiros terminaram por produzir, organizar e arquivar toneladas de provas contra si mesmos." (...)

Não havia dúvida: a bem da memória nacional, era preciso sequestrar o arquivo do STM"

Operação cinematográfica

A operação montada para por o plano em prática é digna dos melhores filmes de mistério e espionagem. Aproveitando a brecha que permitia aos defensores retirarem os processos do tribunal para análise por 24 horas, um grupo de advogados resolveu duplicar todo o acervo do STM, num trabalho de formiguinhas que exigiu uma enorme logística.

Com a ajuda dos religiosos engajados na luta pelos direitos humanos - Jaime Wright e D. Paulo Evaristo Arns, que viabilizaram a captação financeira que sustentou o projeto - os advogados montaram uma estrutura com escritório de fachada, contratação de pessoal e aluguel de máquinas de xerox que trabalhariam ao limite máximo, em turnos de 24 horas, sete dias por semana.

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Para não levantar suspeitas, vários advogados requisitavam um processo diferente do STM e levavam para o birô de clonagem. O material era então enviado de ônibus e avião para São Paulo, onde era organizado e processado por uma outra equipe sediada num galpão que mudava de local quando havia a menor suspeita de que o local pudesse ter sido descoberto. Por precaução, cópias em microfilmes foram enviadas para fora do país.

Contabilidade do inferno

Três anos depois, em 1982, os advogados tinham conseguido quase todos os processos políticos que tramitaram no STM de 1964 a 1979. Ao todo, relata Lucas Figueiredo, foram "sequestrados" 707 processos - uma média de 19 por mês -, que resultaram em mais de 1 milhão de páginas xerocadas. O documento-mãe produzido pelos pesquisadores, chamado de "Projeto A", tinha 6.891 páginas divididas em 12 volumes. Nas palavras do autor, era a "contabilidade do inferno". Para ficar em apenas dois números: "84% das mais de 3 mil prisões não foram comunicadas à Justiça; das cerca de 400 mortes, um terço inclui o desaparecimento do corpo da vítima".

Terminado o processo de captação, os três anos seguintes seriam dedicados ao processo de organização e edição do material em formato livro, que ficou a cargo do jornalista Ricardo Kotscho. Sucesso imediato de venda, com várias reimpressões, o livro teve grande repercussão. E quatro meses depois ao lançamento ainda viria com outra bomba: a lista, divulgada pelo cardeal Arns, com os nomes de 444 torturadores.

Livro secreto

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Assim como acontece agora com o site de Assenge, a divulgação dos dados pelo pessoal do 'Nunca Mais' causou uma reação. E, para surpresa de muitos, pois o nascente regime civil ainda engatinhava, a reação viria na mesma moeda: um livro. O Exército revirou seus arquivos e de outras forças para editar um livro com a sua versão dos fatos. Finalizado em 1987, o "Orvil" (livro ao contrário) no entanto teve o lançamento abortado e continua secreto, restrito a alguns poucos militares e civis.

Lucas Figueiredo, que teve acesso a um dos poucos exemplares impressos pelo militares, conta em seu livro a história dos dois livros. A grande história ainda guardada em alguns arquivos fechados brasileiros está à espera de seu Wikileaks.

# Brasil: Nunca Mais

# Projeto Orvil | # (PDF)

# WikiLeaks

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# WikiLeaks no Estadão

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