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Memória, gente e lugares

Sai em DVD show de Ray Charles no Brasil em 1963

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Por Edmundo Leite
Atualização:

O Brasil ganhou um lugar de destaque na nova onda em torno do cantor e músico Ray Charles, que morreu no ano passado aos 73 anos. Em meio à expectativa das indicações do filme que conta a sua vida ao Oscar e ao sucesso do tributo Genius Loves Company, foi lançado na Europa e Estados Unidos um DVD com um registro raro da primeira turnê de Ray Charles no Brasil, em 1963. Com um erro de acentuação no título, Ô-genio Ray Charles Live in Brazil 1963 mostra dois shows que Charles fez no Teatro Cultura Artística, em São Paulo, no dia 19 de setembro daquele ano.

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O registro em preto-e-branco da histórica apresentação foi retirado de um videoteipe exibido três dias depois dos shows pela extinta TV Excelsior, responsável pela vinda do cantor ao País. Além de mostrar Charles num dos melhores momentos de sua carreira, às vésperas de completar 33 anos, o DVD tem um atrativo extra para o público brasileiro: o programa, exibido uma única vez, está exatamente como foi transmitido pela Excelsior, inclusive com os comerciais das também extintas Lojas Erontex, patrocinadoras do show. O lançamento do DVD no Brasil, pela Warner Music, que obteve os direitos do acervo de Ray Charles pouco antes de sua morte, está previsto para o fim de fevereiro.

Briga por audiência

A façanha da Excelsior de trazer o então cantor de maior sucesso no mundo foi resultado de uma briga de emissoras de TV por audiência. Nos últimos anos, a Record reinava absoluta na preferência do público e havia trazido para apresentações em seu teatro grandes nomes da música internacional, como Ella Fitzgerald, Sarah Vaughn, Nat King Cole, Tony Bennet, Dizzy Gisllespie, Pepino de Capri, Rita Pavoni e Charles Aznavour, além de astros do cinema como Tony Curtis, Marlene Dietrich e Jane Russell. As apresentações aconteciam no Teatro Record, que ficava na atual "região dos lustres" na Rua da Consolação. Aos poucos, porém a Record estava perdendo terreno para Excelsior, que arrendara o Cultura Artística, um pouco abaixo, na Nestor Pestana, ao lado da Praça Roosevelt, para servir de auditório de seus programas. Segundo o produtor musical e crítico Zuza Homem de Mello, a Excelsior não poupava esforços para alcançar a concorrente: "Eles estavam com muito dinheiro", conta Zuza, que conhecera o artista em 1959 nos Estados Unidos e que não foi aos shows em São Paulo por estar trabalhando na Record no mesmo horário.

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Em meio a essa disputa, a chegada de Ray Charles, era uma grande estocada na emissora concorrente, que pouco antes havia protagonizado um dos maiores micos da história da televisão brasileira: anunciara com pompa, durante dias, uma grande atração internacional surpresa, para no dia 31 de março mostrar um sósia e cover de Frank Sinatra vindo dos Estados Unidos. A brincadeira, ou trote, da Record frustrou o seu público e rendeu várias críticas nos jornais. Com isso, a presença de Ray Charles na Excelsior foi tratada como um acontecimento épico pela emissora. O título do disco lançado para aproveitar a presença do astro no País, por exemplo, - "Ray Charles entre nós" - ecoava referências divinas. Programados inicialmente para junho, os shows acabaram acontecendo somente em setembro. Os anúncios de página inteira publicados à época pelo O Estado de S. Paulo davam o tom da expectativa, com um exclamativo "Ele veio mesmo" como cabeçalho.

Apesar do status de maior estrela a pisar em palcos brasileiros, Charles não deixaria de ter contratempos em sua estada no País. Um deles justamente por conta da briga entre as emissoras. Num lance parecido com a recente exibição pelo SBT de um filme anunciado pela Globo, a Record e a TV Rio, braço da emissora naquele estado, exibiram um vídeo-tape de uma apresentação de Ray Charles no Newport Jazz Festival de 1959. O golpe da Record rendeu uma polêmica. Um "comunicado ao público" da Ray Charles Corporation, publicado no Estado em 14 de setembro, assinado pelo agente Henry Golddrand, dizia que o vídeo fora exibido sem autorização do artista e que uma ação criminal contra os responsáveis seria movida pela empresa.

Denúncia anônima

O outro contratempo, que segundo relatou o Estado no dia da estréia em São Paulo quase ameaçou a temporada de Charles no Brasil, foi originado por uma denúncia anônima. A Polícia Marítima, então responsável pelo controle de estrangeiros, recebeu uma denúncia de que Charles estava no País com visto de turista, o que o impediria de cumprir qualquer contrato de trabalho em território nacional. Para resolver o impasse Charles deveria voltar ao Estados Unidos, se apresentar a um dos consulados brasileiros e ainda apresentar "atestado médico para provar sua capacidade física para o trabalho". O problema virou caso diplomático e foi resolvido após intervenção da embaixada americana junto ao Itamarati.

Se havia alguma dúvida de sua capacidade física para o trabalho ela foi tirada com os 10 shows que ele fez durante os sete dias que ficou no Brasil. A temporada começou no Rio, com shows no Teatro Municipal e no Maracanãzinho. A passagem por São Paulo começou com os dois shows feitos na mesma noite de quinta-feira no Cultura Artística e terminou com apresentações no ginásio do Clube Paulistano, no fim de semana. A estréia de Charles, que trouxe uma trupe de mais de 40 pessoas, entre músicos e um quarteto feminino de vozes, as "Raylets", agitou o centro de São Paulo. Uma multidão ficou de prontidão durante o dia em frente ao Hotel Jaraguá, bem próximo ao auditório da Excelsior, para conseguir autógrafos do ídolo. Mas Charles só deixou o hotel momentos antes do show. Ao chegar ao Cultura Artística, outra multidão o esperava e, após 15 minutos de autógrafos, "somente logrou ingressar no Teatro contando para tanto com a ajuda de elementos da Guarda Civil e da Força Pública", noticiou o Estado. A performance daquela noite foi exaltada no dia seguinte no artigo O cantor e seus êxitos: "...foi com a sua grande voz que Ray Charles cantou e conquistou uma platéia, apresentando um repertório que tinha muito de novo e as canções pelo público gratamente relembradas, principalmente "I Can´t Stop Loving You". Essas apresentações, agora disponíveis em DVD, de certa forma marcaram o fim do investimento das TVs da época em atrações internacionais por causa da alta do dólar, abrindo caminho para a Era dos Festivais. Ray Charles ainda voltaria a São Paulo outras cinco vezes ao longo de sua carreira. Mas já nessa primeira volta, em 1970, a cidade e o seu centro, onde se hospedara e apresentara, já não eram os mesmos. Assim, além da lembrança de um grande artista, o DVD Ô-genio Ray Charles Live in Brazil 1963 traz como bônus a nostalgia de uma cidade que não existe mais.

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