Por Isabella Marzolla
Como as manifestações se projetam sobre as eleições presidenciais americanas? Em que medida elas se entrelaçam com a crise desencadeada pela pandemia? O que esperar de Joe Biden?
Entrevista com Felipe Loureiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da USP e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU).
Em primeiro lugar, você poderia descrever qual seria a pauta dos protestos nos Estados Unidos?
Há várias pautas. A mais imediata é a pauta por justiça, tanto que um dos mais importantes dizeres entre os manifestantes é "sem justiça, sem paz". Ou seja, enquanto não houver justiça pelo assassinato de George Floyd, levando os policiais responsáveis pelo assassinato à cadeia, não haverá "paz" (ou seja, não haverá fim dos protestos). Há, porém, pautas bem mais amplas, relacionadas ao problema de desigualdade racial e, especialmente, ao racismo estrutural da sociedade norte-americana. Refiro-me aqui à questão da brutalidade policial, à forma pela qual negros são tratados pela polícia diariamente, à desigualdade em termos de oportunidades entre negros e brancos - áreas habitacional, educacional, emprego (as quais, por sua vez, têm efeitos sobre renda e riqueza) - e ao desrespeito à dignidade e ao próprio direito à vida dos negros, especialmente diante da falta de penalização de policiais responsáveis por atos violentos contra cidadãos negros.
Os Estados Unidos vivem a mais grave onda de manifestações desde 1968, após o assassinato do líder de direitos civis Martin Luther King Jr. As manifestações são resultado de uma profunda desesperança e desconfiança no sistema político e no sistema econômico, ou se circunscrevem a desigualdade racial, violência policial e desigualdade histórica com os negros?
Antes de tudo, é preciso ter cautela ao compararmos as manifestações atuais com aquelas do contexto de 1967-1968. De fato, estamos diante de manifestações impressionantes. Até ontem, terça, dia 02/06, essas manifestações envolveram mais de 200 cidades norte-americanas, localizadas em quase todos os estados. Muitas dessas cidades determinaram toque de recolher por conta dos protestos, envolvendo algo em torno de 60 milhões de habitantes, enquanto quase 30 estados solicitaram ajuda à Guarda Nacional. Tudo isso mostra que, de fato, os protestos decorrentes do assassinato de George Floyd já são, em si, históricos. Mas a onda de manifestações do ciclo 1967- 1968, que atingiu o ápice com o assassinato de Martin Luther King, foi não apenas intensa e abrangente, mas muito mais violenta, em termos de mortos e feridos, e muito mais longa, temporalmente falando. Para saber se estamos diante de algo próximo à 1967-1968, precisamos ver como as atuais manifestações se desenvolverão nas próximas semanas e, talvez, meses.
Passando para o tópico central da pergunta: como disse antes, a pauta dos manifestantes é multifacetada, com elementos entrelaçados. O elemento unificador é, sem dúvida, a questão da brutalidade policial e a conexão dessa brutalidade policial com o racismo estrutural do país, que representa uma desvalorização da vida e dos direitos do cidadão norte-americano com base na sua cor de pele. Junto com isso há também, até porque esses elementos são fortemente relacionados entre si, uma profunda desesperança com relação ao sistema político norte-americano, que por décadas não se mostrou capaz de enfrentar as causas e os efeitos desse racismo estrutural.
Em que medida estes protestos dialogam com a crise desencadeada pela pandemia?
Os dados são eloquentes e inquestionáveis: a pandemia de Covid-19 está afetando proporcionalmente mais negros do que brancos nos Estados Unidos. Isso tanto em termos do número de mortos e infectados, quanto, inclusive, em termos do maior número de pessoas desempregadas.
Isso não é uma surpresa. Negros vivem em condições mais precárias do que brancos, têm menor acesso ao sistema de saúde, têm menores condições de cumprir regras de isolamento social (habitação precária; formas de trabalho presencial, impedindo home office; dependência maior de transporte público, etc.); logo, não é surpreendente que negros estejam sofrendo mais com a pandemia no que tange a mortos e infectados.
O nível menor de escolaridade dos negros em comparação aos brancos, em média, também ilumina o porquê da taxa de desemprego na comunidade negra ser maior; em termos gerais, diversos tipos de trabalhos manuais e presenciais (setor de serviços, especialmente) foram cortados, enquanto trabalhos intelectuais, que podem ser feitos de casa, e que normalmente são exercidos por pessoas com maior nível de escolaridade, foram mantidos.
Somando-se tudo isso, muito provavelmente o senso de impotência, raiva e desesperança na comunidade negra decorrente da brutalidade policial vem sendo potencializado pelo maior impacto que negros estão sofrendo, econômica e socialmente falando, com a pandemia.
No mesmo mês em que George Floyd foi assassinado pelas forças policiais, o jovem de 14 anos João Pedro também o foi, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Aliás, mata-se mais negros no Rio de Janeiro do que nos Estados Unidos inteiro; Por que aqui no Brasil as manifestações são mais tímidas? Como comparar o racismo estrutural daqui com o dos Estados Unidos?
Os Estados Unidos desenvolveram uma sociedade pós-escravidão abertamente segregacionista, na qual diferenças socialmente construídas entre brancos e negros, como separação estrita em espaços públicos e contraste em direitos políticos e civis, deixavam explícita a profunda violência do racismo no cotidiano do negro norte-americano. Esse tipo de racismo explícito sem dúvida contribuiu para gerar um senso de identidade e de dever de luta muito forte na comunidade negra do país. Além disso, a profunda contradição entre os valores e princípios professados por líderes políticos norte-americanos (sempre brancos) - sobre o quanto os Estados Unidos se caracterizariam por ser a terra da liberdade e da justiça - e a evidente falta de liberdade e justiça que o negro vivia e vive em seu dia a dia também deve ser entendida como um elemento importante para a explosão de movimentos por direitos civis nos Estados Unidos no pós-guerra, especialmente na década de 1960.
No Brasil, por outro lado, percebemos um movimento negro crescentemente atuante nas últimas décadas, com resultados importantes em termos de políticas públicas, como cotas raciais na educação e no serviço público, por exemplo. Apesar disso, o processo de construção da identidade nacional brasileira, na qual a narrativa de uma suposta mestiçagem e relacionamento harmônicos entre brancos, negros e índios apresenta uma enorme centralidade, sem dúvida influenciou a maneira pela qual o movimento negro se constituiu no Brasil.
Mesmo que essa narrativa venha sendo contestada por muitos há décadas, especialmente por lideranças do movimento negro, mostrando-se o quanto o racismo brasileiro tem uma face profundamente violenta e cruel, não há dúvida de que a narrativa e as práticas relacionadas ao mito da democracia racial contribuíram para uma menor sensibilidade - e, consequentemente, menor mobilização - da sociedade brasileira diante de pautas sobre racismo e desigualdade raciais no país.
Trump tem evocado a "lei e a ordem" e sugerido inclusive intervenção das Forças Armadas nas ruas. Ao final de seu discurso no domingo (31), ele saiu da Casa Branca caminhando para visitar a Igreja de St. Johns que havia sido vandalizada, com uma Bíblia nas mãos. Há algum simbolismo ou estratégia eleitoral por trás desta ação?
Sem dúvida. Desde o início, Trump tem tido forte apoio de setores evangélicos. Tirar foto com uma Bíblia na mão em frente à Igreja St. Johns, conhecida como a "igreja dos presidentes" é muito simbólico, especialmente para membros da comunidade religiosa do país. Além disso, o fato da igreja ter sido parcialmente incendiada por manifestantes no domingo, dia 31/5, e de o presidente ter tido que se instalar no bunker da Casa Branca na sexta, dia 29/5, causaram profundo incômodo em Trump, exatamente porque ambos os episódios passaram a imagem de um governo fraco, que estaria sitiado pelos manifestantes.
Vale lembrar, por outro lado, que líderes religiosos, inclusive o próprio arcebispo de Washington, D.C., expressaram fortes críticas a Trump pela foto em frente à igreja. O ato foi visto por essas lideranças não só como uma instrumentalização da fé em forma de propaganda em um contexto tão delicado do país, como uma ação absolutamente inapropriada, especialmente porque o governo teve que usar da força contra manifestantes para dispersá-los do local, apesar de os mesmos estarem se manifestando pacificamente.
Como essa nova crise afeta o governo Trump? E, se possível, como ele pode usar a seu favor até as eleições, em novembro deste ano?
Ainda é cedo para responder, mas, se tomarmos a tendência das pesquisas de opinião recentes, é possível que a atitude truculenta de Trump contra manifestantes corrobore a imagem de um presidente insensível aos problemas e dificuldades do povo norte-americano, algo que já vem se consolidando em razão do approach do governo ao lidar com a pandemia de Covid-19. Uma outra possibilidade é a de a base eleitoral de Trump se energizar com os ataques que o presidente vem fazendo contra "desordeiros", anarquistas, antifascistas, etc., que, conforme Trump, estariam se aproveitando da morte de George Floyd para trazer caos ao país. Mas, como disse, ainda é cedo para sabermos de que forma a opinião pública caminhará frente aos protestos e às atitudes beligerantes de Trump.
O governo Trump tem claras tendências autoritárias. Como todo líder autoritário, Trump incomoda-se profundamente com qualquer crítica à sua pessoa e à sua administração. Junte-se a isso a imagem de líder "forte" e garantidor da "ordem" que Trump é obcecado em passar. Manifestações de rua, algumas das quais com tons violentos, são vistas por Trump como uma contestação direta à sua autoridade e liderança enquanto presidente; daí a sua resposta extremamente dura contra manifestantes.
No caso de Hong Kong, as críticas de autoridades norte-americanas ao governo chinês devem ser vistas à luz, de um lado, como mais um sinal da crescente deterioração das relações bilaterais EUA-China, e, do outro, como uma resposta do governo norte-americano às crescentes incursões chinesas contra a autonomia de Hong Kong, em desrespeito a acordos internacionais assinados pelo governo chinês no final dos anos 1990 quando da retomada da área dos britânicos.