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Jornalismo de Reflexão

As paixões de Soninha

Ao lado de seu parceiro, Paulo Sergio Rodrigues Martins, que conheceu em uma ação social quando ele ainda era morador de rua, Soninha fala sobre defeitos e virtudes do atual prefeito, que a demitiu após pouco mais de 100 dias de trabalho

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Por Morris Kachani
Atualização:

FOTO: Morris Kachani Foto: Estadão

João Doria, o prefeito de São Paulo, montou um bom time de secretários mas nenhum deles consegue despachar a sós com o chefe, pois ele só quer saber de soluções imediatas, que costuma cobrar em reuniões coletivas. O prefeito tem aversão a problemas e também se impacienta com assuntos de Direitos Humanos. Na Cracolândia, montou uma operação "destrambelhada". É, enfim, um gestor obsessivo e com força de vontade, mas que peca pelo excesso de auto-confiança, nesse sentido se parecendo até com Trump.

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Estas todas são todas considerações da vereadora Soninha Francine (PPS), 49 anos, que confessa que sentiu rejeição por João Doria no início, mas encantou-sequando o conheceu pessoalmente, ainda durante a campanha. Foi seduzida para assumir a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social e três meses e meio depois, em abril, demitida pelo próprio. O vídeo em que Doria anuncia sua saída acabou sendo considerado constrangedor por muitos e virou objeto de polêmica.

Soninha recebeu este blog para uma entrevista, e ao fim da conversa apresentou seu parceiro Paulo Sergio Rodrigues Martins, de 41 anos. Natural do Paraná, por 20 anos Paulo Sergio morou nas ruas e praças de São Paulo, Rio de Janeiro e Santos. Eles se conheceram há cerca de quatro anos em uma ação social organizada por Soninha e dois amigos seus. A proposta era de que os participantes criassem vínculos de afeto e amizade com a população marginalizada.

Nestes encontros, Soninha acabou se apaixonando por Paulo Sergio que segundo ela, estava completamente imundo e com a barba emaranhada. O primeiro beijo romântico, conta ela, foi debaixo do Minhocão. Paulo Sergio, que vivia na praça Marechal Deodoro, passou a morar com Soninha e sua filha mais nova, Julia, de 20 anos. O casal passou por uma trajetória de mais baixos que altos, enfrentando problemas como o alcoolismo dele ou a rejeição da família dela.

Hoje, na visão de Soninha, as dificuldades parecem estar sendo deixadas para trás. Paulo não bebe há quatro meses e aos poucos o círculo social e familiar se constrói em torno do casal. Soninha, que medita duas vezes por dia e é adepta do budismo de tradição tibetana, costuma levar o parceiro ao templo todos os domingos. "Antigamente ele gostava mas não tinha paciência, só aguentava 5 minutos. Hoje ele até medita!", conta a vereadora.

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O casal ficou em dúvidas sobre quem deveria contar a história de seu encontro, mas Paulo Sergio preferiu que Soninha desse sua versão em um primeiro momento. Combinamos que Paulo Sergio nos daria uma entrevista exclusiva para contar a história de sua vida e desse amor que rompeu barreiras sociais, em um segundo momento. Aguardem o próximo post.

 

Antes de mais nada, poderia apresentar seu parceiro?

Ele é o Paulo Sergio, meu companheiro. Eu conheci o Paulo faz uns quatro anos, gostei dele no dia que o conheci, e ele foi bem antipático comigo, foi bem refratário ao contato.

Como foi que se conheceram?

Eu participava de um trabalho social com população de rua, e o método e o objetivo era fazer amizade. Então a gente saía pela rua puxando assunto, puxando conversa, fazendo amizade. Não tínhamos essa meta original de tirar as pessoas da rua, das drogas, de reaproximá-las da família. Isso podia surgir, mas era primordialmente uma relação de amizade. O amigo tá ali pra falar, ouvir, fazer companhia. E aí algumas amizades nasciam fácil, no primeiro contato a gente já ficava bem próximo, tinha uma empatia fácil. Mas quando eu conheci o Paulo, ele não queria conversa, nada, nem um pouco. Me olhou feio, feio!

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Como ele estava, o Paulo?

Ele morava na rua.

 

Onde ele morava?

Marechal Deodoro, na Praça da Sé, Rio de Janeiro, Santos, Santa Cecília, no Brasil todo... Vinte anos de rua.

 

Vinte anos de rua! Mas ele tava bem?

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Tava "bem Johnson".

 

"Bem Johnson"?

Tava péssimo! Cara, e aí eu pensei: "Vou derreter essa carapaça". Quanto o encontrei, ele estava imundo. Em estado lamentável, com a barba toda emaranhada. Era o protótipo do morador de rua. Ele estava ostensivamente largado.

 

Ainda assim, você se apaixonou?

No primeiro dia, nem ele se conforma.

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Você viveu na pele a temática do morador de rua.

Ah sim, eu me apaixonei por ele, do jeitinho que ele tava. Não é que eu bati o olho e me apaixonei, mas ele mexeu comigo. Me tratou mal daquele jeito, e eu pensei: "Ah beleza, tá tudo bem, não quer conversar". A gente lidava com isso o tempo todo quando chegávamos pra conversar com alguém. Tem horas que o cara não quer conversa. Isso fazia parte da nossa ação. O projeto se chamava Ação Bodhisattva [No budismo tibetano, bodhisattva é um dos quatro estados sublimes que se pode alcançar em vida exercendo a compaixão.].

 

Ação Bodhisattva? Era um projeto budista mesmo?

De certa forma sim. Era um projeto meu e de dois amigos. A gente se conheceu no templo budista.

Arquivo pessoal Foto: Estadão

E daí, o que aconteceu?

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Ele me olhava com aquela cara muito feia, não me dava a menor confiança. A gente tinha um caderno pras pessoas escreverem uma lembrança. Aí ele perguntou: "O que é que tem aí? O que vocês fazem aí?". Eu contei que a gente anotava as lembranças, o que as pessoas quisessem escrever. Perguntei se ele queria escrever: "Não, eu escrevo muito mal. Eu falo e você escreve".

 

Ele é analfabeto?

Não, ele dizia que lia mal mas quando fui ver, percebi que ele lê direito. Mas continuando, aí ele recitou um poema, e falou que foi sua irmã que o havia escrito. Era um poema sobre a saudade. Foi a primeira brecha que ele deu. Fiquei muito tocada por ele, muito mexida. Aí eu tive que admitir pra mim mesma que eu tava ficando a fim do cara, né? Aquela coisa.

 

Como foi o primeiro beijo? Na rua, na sua casa?

É... Ah gente, ele morava na rua, eu encontrava ele na rua. Nosso primeiro beijo romântico foi debaixo do Minhocão [risos]. E é isso, tô com ele há três, quatro anos. Com poucos altos, muitos baixos. Muito, muito problema, muita dificuldade, muita, muita, muita, muita.

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Que tipo de dificuldade?

Ah, dificuldade de alcoolismo, né? É muito difícil. E não é só a dependência física, mas a sua vida social todinha gira em torno de uma garrafa de pinga, entendeu? Todos os seus relacionamentos, toda sua rotina, toda manhã, tarde, noite. Você mudar o relacionamento é muito difícil.

Quando você o levou para sua casa?

Demorou um tempo. Hesitei muito. Era um cara super impulsivo, de emoções extremadas. Na rua a gente já tinha desentendimentos. Mas a gente tinha que namorar em algum lugar. E criei coragem.

 

Vocês brigam bastante?

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Teve um tempo em ele que ficava de castigo, dormia no carro. É difícil brigar com alguém que não tem endereço. Mas agora dá pra dizer que a gente está junto, porque agora ele parou de beber. Foram muitos anos de pinga. Da hora que acordava até a hora que dormia.

 

E os padrões de higiene?

Quando começamos a namorar higiene não era um problema, nunca. Abraço as pessoas como elas estiverem. Mas assim que ele tomou banho, depois de sei lá quanto tempo, não conseguiu mais se acostumar a não tomar banho.

 

Você chegou a dormir na rua?

Cheguei a cogitar. Sempre tive essa intenção de dormir na rua, pra sentir na pele.

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Quem mora com vocês?

Minha filha mais nova, a Julia. Algumas coisas ainda são difíceis. Mas agora tá muito legal, muito legal. Mas foi sofrido.

 

Como foi o primeiro dia dele em sua casa?

Ele se olhou no espelho pela primeira vez, viu seu aspecto, e me disse: "Meu Deus, como você foi gostar de mim?". Hoje ele se cuida, curte passar um gel no cabelo, anda cheiroso, usa calças legais. Ele até pega no meu pé com o jeito que eu me visto. Joga fora tênis velho, esconde meus moletons. Mudei meu jeito de vestir por causa dele, comecei a prestar mais atenção. Hoje me olho mais no espelho.

 

Existe um abismo cultural entre vocês?

Tinha um abismo de experiências culturais muito grande. Ele nunca tinha visto uma peça de teatro, nunca tinha ido ao cinema. A sensação que eu tinha era de que estava com um matuto pela primeira vez na cidade. A experiência urbana dos moradores de rua é muita intensa. Eles são informados, assistem TV, lêem jornal. Mas quando saem de seu circuito, parece que estão conhecendo a cidade pela primeira vez. Paulo observa as coisas com um olhar de espanto, como se fosse o olhar de uma criança. Ele fala as coisas com espontaneidade, o que às vezes pode ser inconveniente. Por mais vivido e calejado que seja, ele tem um olhar inocente. É capaz, por exemplo, de soltar um comentário irreverente sobre o chapéu de uma moça no elevador.

 

Que tipo de programa vocês gostam de fazer?

Adoramos ficar em casa, assistir TV e ouvir música. Ele adora as séries de TV, ele não conhecia, não tinha acesso, e está encantado. Por causa dele eu assisto os seriados dublados. Também é doido por novela. Comecei a ver novelas por sua causa.

 

E a família dele?

Fomos na casa da mãe. Ela ficou dois anos sem notícias suas. Comentou que quando via cenas da cracolândia, ficava apavorada, imaginando seu filho ali.

 

Ele teve problemas com crack?

Muito residual. Foi mais alcoolismo.

 

Você falou de muitos baixos. Por que?

O alcoolismo. Quem bebe fica desagradável. Ele chegava a ser rude comigo na frente de outras pessoas. Completamente injusto. Meus amigos não suportavam. Só amando muito para aguentar, ou sendo um budista paciente.

 

O que sua família achou?

Eu passei a saber como é você ser lésbica, por exemplo, e a sua família não aceitar a sua homossexualidade de jeito nenhum. Era assim que eu me sentia. Eu tenho um relacionamento, mas eu não posso levar meu cônjuge na reunião da família. A família não aceita, ela abominou, me esconjurou. E ele não fazia nada para facilitar. Foi muito difícil com minha mãe, quase tudo foi difícil com ela.

 

Até hoje?

Não, agora tá... melhorou, melhorou. Faz quatro meses que ele parou de beber, então isso muda tudo, completamente. Eu estava por um triz de não aguentar mais.

 

E suas filhas?

O que doeu foi minhas filhas terem tido total rejeição. Eu entendo, estavam preocupadas comigo, tinham medo por mim. E eu falava pra elas que eu também tinha, que eu não estava viajando, achando que tinha encontrado uma pessoa super equilibrada. Elas realmente acreditavam que a mãe tinha enlouquecido.

Julia é a que mais tinha razão, porque vivendo comigo passou por um milhão de perrengues. Perrengues do tipo ele beber e ficar estúpido, ignorante. De eu botar ele pra fora de casa e ele fazer escândalo na rua, show de horror.

 

Ele tá trabalhando?

Tá fazendo uns bicos por enquanto, estamos em busca de ocupação fixa.

 

Como essa relação te transformou?

Mudei bastante em algumas coisas, não no jeito de ser, mas no de fazer, de cuidar da casa. Lavar louça logo depois de comer é algo que aprendi com ele, porque ele é muito bom faxineiro, me põe na linha nisso.

 

Como ele era quando o conheceu e como ele está hoje?

Ele era o maloqueiro mais sujo da roda, mas sempre teve uns cuidados com a coisa do banheiro. Lembro que no comecinho do namoro ele jogava o guardanapo no chão, esse tipo de coisa. Um dia o vi colocando a caixinha de chiclete no bolso e não no chão, foi uma conquista.

Quando morava na rua, ele cuidava de quase todos, mas dele mesmo não. Cuidava dos amigos maloqueiros, por exemplo, ajudando a administrar remédios controlados. Isso me tocou bastante. Até hoje a gente encontra seus amigos, ali na Marechal, embaixo do Minhocão.

 

E como está agora?

Agora que ele parou de beber tenho uma relação que me faz bem.

 

O que ele achou de sua demissão da Prefeitura?

Achou que fui sacaneada [risos]. Com razão.

 

Por que acha que foi demitida?

O Prefeito me cobrava sobre a implementação de novos projetos, e eu contava das dificuldades, mas não era isso que ele queria ouvir. Ele só queria os avanços, não os problemas. Isso é uma dificuldade de todo o secretariado com o prefeito. Ele não despacha com os secretários, não existe a oportunidade de sentarmos com o prefeito e dizer que estamos passando por alguma dificuldade.

 

E o vídeo da sua demissão? Achei ele meio chocante.

Obrigada. Mas sabe que pra mim, o que me deixou mal foi a demissão em si, o anúncio já não me abalou.

 

Não houve uma deselegância no modo como foi feito esse anúncio? Por que você aceitou que acontecesse dessa forma?

Eu acho que foi pretensioso querer passar para as pessoas a ideia de: "olha, estamos nos separando aqui numa relação profissional, mas continua tudo bem, pessoalmente". Eu não fazia ideia de que o anúncio fosse ser assim. Aliãs, eu nem fazia questão de gravar um vídeo, ele que propôs.

 

O que você acha do Doria?

[Longo silêncio] Eu acho que ele se perdeu na autoconfiança. Tem uma medida de autoconfiança que é essencial, mas se você passa do ponto, aí você não escuta mais ninguém, você só escuta aquilo que confirma o que você já pensava.

 

Essa coisa dele se vestir de gari, não-sei-o-que mais, você acha legal?

Eu não achava legal. Parece bem sincero ele querer demonstrar que é um trabalhador que põe a mão na massa e que não é um cara de gabinete que vive nas nuvens. Ele vai lá e sabe qual é. Mesmo respeitando essa convicção dele, eu acho ruim porque não é verdade. A gente pode demonstrar todo o respeito pelos garis participando de um mutirão e vestindo as luvas, as botas, a proteção. Não precisa vestir o uniforme de gari.

Por outro lado, eu vi que pras pessoas o prefeito vestir o uniforme delas era importante, elas se sentiam prestigiadas.

 

Continuando sobre ele, em um espectro ideológico, ele seria um cara de direita no final das contas?

Não sei se ele é conservador, eu acho que ele é... Nas pautas de comportamento, que normalmente são usadas como baliza, ele não é um cara conservador, ele não tem dificuldade com temática LGBT, temáticas de direito das mulheres, mas na parte da pauta dos direitos humanos de um modo geral, a impressão que dá é que ele não tem muita paciência: "Não me venham com teoria, quero saber na prática o que a gente vai fazer".

 

Você acha que ele conhece a cidade hoje?

Eu vejo que ele conhece a cidade sim, mas não conhece as pessoas tanto assim. Acho que ele não percebe todas as nuances, até porque foi eleito em primeiro turno.

 

Você acha que ele é um bom nome pra presidência do Brasil, ou ele tá verde demais?

Acho que ele é um nome viável. Mas eu bato na tecla da autoconfiança em excesso. Esse é um problema. É achar que as coisas são mais fáceis do que elas são, achar que as coisas dependem mais da sua capacidade do que elas realmente dependem. Um político pode ter todas as capacidades, as habilidades, e até condições favoráveis, mas isso não é suficiente. É tudo muito mais complexo do que você ser capaz de fazer direito. E eu acho que isso ele não entendeu.

Ele acredita demais na parceria entre o público e o privado, que a soma de esforços e recursos é suficiente. Então ele tem essa crença inabalável na eficiência possível de todas as coisas. Por um lado isso é um tesão, porque é um cara que olha pras coisas com as quais as pessoas já se conformaram e não se conforma. Quando ele vê uma pilha de processo pra assinar amarrada com um barbante, ele grita: "Parem com isso!". Ele mandou parar de imprimir o Diário Oficial, mandou pôr na internet. Essa impaciência é legal.

 

Não teve um evento da Prefeitura em que você se atrasou?

Ah teve, mas isso foi bobagem, não fez a menor diferença.

 

Pra ele não faz? Porque ele é meio meticuloso.

Ele é obsessivo, e com horários é muito rigoroso. Se tá marcada uma reunião às 7h30, 7h30 começa a reunião. Não é 7h30, "pessoal, vamos sentar". Dá 7h30, é "pessoal, bom dia". É impressionante. Agora você entra muito fácil nesse ritmo também, é legal ser pontual e organizado, sabe? E quando tá todo mundo no fluxo, na mesma vibração. É um tesão, começar reunião às 7h30 na Prefeitura. Eu sou uma pessoa matutina, eu gosto.

 

Como rolou esse seu atraso? O despertador não tocou?

Nem sei. Talvez ele tenha tocado, e eu tenha acionado o modo soneca. Atrasei no primeiro dia por puro estresse e preocupação. Passei a noite praticamente em claro, sonhava que perdia a hora, acordava e não conseguia dormir de novo. Acordei a noite inteira palpitando, em pânico, desespero. Até que uma hora eu acordei e o pesadelo tinha se transformado em realidade.

 

Era o evento de estreia dele?

Era o primeiro dia de governo. Todos os secretários às 6h da manhã na Praça 14 Bis. Para começar o mutirão Cidade Linda. Era pra dar um exemplo de como que a gente iria trabalhar. Todo mundo na rua, e na rua às 6h da manhã.

 

E você chegou que horas?

Eu acordei às seis. Eu quis morrer. Pesadelo! Ele disse: "6h, uniformizados". Eu entrei no uniforme e fui correndo, desesperada, porque às 6h era a foto oficial da inauguração do governo. Já tínhamos um grupo de secretários no WhatsApp, e gravei uma mensagem dizendo que tinha perdido a hora, mas que tava indo. Quando eu cheguei já tinha sido a foto oficial. Sem mim, claro.

 

Pesadelo!

Pesadelo, o primeiro dia! Eu queria ter chegado antes, estava super preocupada com os moradores de rua, tava morrendo de medo do estresse que poderia acontecer ali. Mas nos preparamos super bem, pra deixar bem claro pra eles que a Operação Cidade Linda não era com eles, muito menos contra eles. Era uma operação de zeladoria, não podia ficar morando na calçada, no meio da rua, no canteiro, na praça, mas eles poderiam ir pra outro lugar.

 

Quando sua demissão foi decidida?

Quando o Doria me chamou prum café num domingo, na casa dele, eu sabia que ali a minha batata já tinha assado. Porque a gente foi se desentendendo nas reuniões, dele ter impaciência comigo, e eu retrucar. Os secretários não tinham momentos a sós com o Prefeito. Era sempre em público, sempre nas reuniões. E até nas reuniões foi dando na vista que a coisa estava ruim.

 

Como foi o tom dessa conversa?

Ah, ele foi super formal, super cortês: "Eu conheci você na campanha, gostei muito de você e você sabe disso. Eu continuo gostando muito, você tem uma sensibilidade, tem uma espontaneidade, tem um amor, tem uma humanidade que eu admiro muito. Mas você não queria ser secretária, eu insisti pra você ser secretária, você queria ir pro Legislativo, e a tua vocação tá lá no Legislativo".

 

Ele deu espaço pra você falar? Como é que foi?

Eu só engolindo, mas daí ele falou: "Agora quero te ouvir". Falei das dificuldades que eu tinha. Falando com ele da gestão, escorria lágrima. No dia que ele me mandou embora, eu chorei pra caralho. Chorei de raiva, de frustação. Falei pra ele que estava muito frustrada.E fui embora chorando. Eu tava fodida naquela Secretaria, mas eu não queria sair, eu não pedi pra sair.

 

Que achou dessa ação na Cracolândia? Se você estivesse na Prefeitura talvez fosse pior, não?

Eu fico pensando no que eu teria conseguido fazer antes e logo depois da ação da Polícia Militar. O primeiro erro grave da prefeitura foi ter ido lá e comemorar uma ação que sequer era sua.

A polícia se organizou com muita antecedência e baixou lá com peso. Ela estudou, planejou, escutou, investigou e montou uma puta operação sufocante. Botou os usuários para correr - eles tiveram que abandonar suas coisas -, e prendeu os traficantes. A ação policial poderia ter sido de outro jeito? Não sei. Pra prender aqueles caras ali, realmente não sei.

Acho que o melhor jeito de agir é fora do lugar, cortar o abastecimento. Mas não tendo sido assim, a polícia conseguiu chegar lá e fazer várias prisões, apreender várias coisas. E depois derrubar tudo que tinha pela frente. Até onde se sabe não deu um tiro e não teve um sangramento.

Tanto pra quem que acha que a ação foi boa, quanto pra quem acha que foi ruim, o mérito não é da prefeitura [risos]. Mas aí o prefeito apareceu comemorando: "Tá vendo? Eu não disse que eu ia acabar com a Cracolândia?". Puta engano. Se eu estivesse lá teria corrido enlouquecidamente pra montar espaços no entorno da Cracolândia, tenda, ônibus, trailer, container, para que as pessoas tivessem um lugar para ir, pra se refugiar, tipo campos de refugiados numa ação de emergência. Alguma coisa você tem que fazer! E o que que a prefeitura fez? Que eu saiba, não fez nada.

 

Qual é a sua avaliação dessa ação da prefeitura?

Só depois da ação policial ter terminado, e de ter comemorado o fim da Cracolândia, é que a Prefeitura começou a tomar as providências com os usuários. E muito destrambelhadamente, aquela coisa de no dia seguinte ir lá e querer derrubar imóvel pra mostrar a reconquista do espaço, aquilo foi muito desastrado. Eu jamais teria concordado com aquilo. Eu ia ter espanado ali.

 

Qual seria seu plano?

Nosso plano era estar presente no território, mas não derrubando as casas todas [risos]. Nosso plano era uma presença da prefeitura ali, com assistência social 24h. Porque hoje tudo ali é meia-boca. Se a pessoa viesse só querendo tomar um banho, que tomasse. Se quisesse descansar um pouco num lugar limpo e seguro, de dia ou de noite, que assim fosse. E se não quisesse, tudo bem, porque ela não pode ser obrigada a ficar ali dentro. Na medida em que você oferece possibilidade de cuidado e de auto-cuidado, a pessoa começa a achar não tão normal assim ficar deitado no chão com os ratos em volta. É uma estratégia válida, validada. Mas a prefeitura tinha um pouco mais essa coisa rápida, imediata, do "vai lá e derruba".

 

Que acha da internação compulsória?

Não tem o menor cabimento. O problema não é a possibilidade da internação compulsória, ela existe, é prevista em lei, mas isso tem um rito. É como se o prefeito dissesse, "acho que tem que internar todo mundo que tem diabete, a pessoa querendo ou não, porque ela não tem condições de decidir sozinha". É tão estúpido quanto. Não é assim que se decide qualquer internação. São necessárias avaliações individuais.

 

A gestão Haddad foi mal?

Foi muito mal. Muito mal a ponto de o Doria ganhar no primeiro turno.

 

Mesmo em termos de assistência social?

Sim, foi muito ruim. Teve avanços, mas muito pontuais, muito pequenos perto da necessidade. Teve alguns novos serviços da assistência social muito bacanas, como Família em Foco, Autonomia em Foco, que foge do modelão "alojamento pra 500 pessoas". Isso é bom, mas aí tinha 80 vagas de família pra cidade toda. Então é quase um projeto piloto, não é a política pública estabelecida.

 

O De Braços Abertos, da gestão anterior, ia bem?

O Braços Abertos, do ponto de vista do conceito de redução de danos, é muito bom. Se o cara trabalha, refaz contato com a família e cuida da sua saúde, não é da minha conta se ele fuma ou deixa de fumar. Agora o que não pode é esse conceito reprovar a ideia de internação e abstinência, rejeitar completamente esta possibilidade. Então tem o pessoal da internação, remédio e abstinência que abomina a ideia da redução de danos. E tem o pessoal da redução de danos que abomina a ideia de remédio e hospital. Eu acho que o ideal seria um composto entre os dois programas, porque cada pessoa é diferente da outra.

 

Tem pouca grana na Assistência Social?

Não, a Assistência tem muito dinheiro. É que tem muito serviço também. A população de rua não é nem um décimo do que a Assistência Social faz. A Assistência Social tem mil e duzentos serviços conveniados. Paga R$ 75 milhões por mês em serviços conveniados.

 

Quanto custa um morador de rua, só por curiosidade?

Num albergue, ele custa cerca de 700, 800 reais por mês.

 

Como era sua relação com seu secretário adjunto, Filipe Sabará?

Filipe foi indicação do Doria, no começo nos demos bem, mas fomos nos desentendendo muito rápido, porque ele acreditava numa fórmula infalível - é essa a ideia que o Doria assimilou -, que se você faz um lugar maravilhoso, as pessoas são muito bem acolhidas, aí você oferece a oportunidade real de trabalho, de reinserção social. Você transforma próprio albergue em um centro de formação e de produção. Então o cara não vai fazer simplesmente uma oficina de panificação. Ele vai trabalhar em panificação, começando por lá mesmo. A padaria do albergue vai oferecer os produtos que são consumidos lá, e vai ter uma qualidade tão boa, que na verdade será fornecedora de outros da vizinhança. Isso baseado no modelo de San Patriano, na Itália. Quem fazia isso em San Patriano era o Jamie Oliver [astrochef inglês]. Há precedentes.

Ele acreditou que era isso, que com dinheiro, doações e patrocínio, você reforma o lugar e faz dele a maravilha, e as pessoas vão pra lá, e lá elas se formam, e elas saem da rua.

 

Doria e Sabará chegaram a fazer um desses centros de acolhimento? Esse é o X da questão.

Não, não fizeram. Não ficou pronto...

 

Tem algum fundamento esse pensamento?

Tem algum fundamento mas que não dá conta do todo. Quando conheci o Filipe lhe perguntei, "mas como é que funciona esse negócio em San Patriniano, quanto tempo as pessoas ficam lá, até que elas saiam e se tornem maitre de um restaurante do Jamie Oliver?" (risos). "Ah, elas ficam lá quatro anos", ele me respondeu. Quatro anos? Não faz sentido.

 

A referência era Jamie Oliver.

É, o Jamie Oliver é um dos parceiros desse grande projeto chamado San Patriniano. Filipe falava, "as pessoas lá dentro são tratadas como se fossem hóspedes de um hotel, e eles mesmo se revezam nesse papel". E no primeiro ano não tem contato nenhum com a família. No segundo ano, tem quinze minutos....

Minha desavença com o Filipe e com o prefeito passou por isso, eles me cobravam grandes projetos em um curtíssimo prazo.

 

Ele quer realizações grandes, quer mostrar.

Isso. Então pro prefeito, faltou esse lado meu de ser empreendedora, ser capaz de usar os recursos disponíveis pra trazer grandes projetos, botar em funcionamento. Isso me fez mal, ser demitida porque supostamente sou uma pessoa de muito bom coração, mas que do ponto de vista da gestão, deixa a desejar.

 

Quantos moradores de rua tem em São Paulo?

O Censo de 2015 diz que são 16 mil.

 

Então, vai criar centros assim pra 16 mil pessoas?

O número é bastante contestado, porque quem trabalha com morador de rua, os movimentos sociais, as ONGs, as igrejas, contestam muito, diz que é mais do que isso. E se são 16 mil pessoas, não é achar 16 mil lugares. As pessoas são complicadas! Muito complicadas. Mas aí expliquei pra ele, teve uma das reuniões que a gente se desentendeu muito rispidamente na frente de todo mundo, e olha que é difícil o Doria ser ríspido, mas ali ele foi, porque o Filipe falou "nós vamos fazer isso, isso, vai ter lugar pra 300 pessoas, e vai ser assim, assado, lindo".

E o Doria respondeu, "ah, ótimo, precisamos conseguir as doações dos colchões, e das camas, e que mais, Sonia?". Eu falei, "não Prefeito, colchão é o de menos. Colchão, beliche, a gente tem no almoxarifado da Secretaria. O problema é a gestão". Ele ficou puto da vida, e mandou procurar a empresa que estava prestando consultoria de gestão.

 

Consultoria de gestão?

Sim, existe uma empresa que foi chamada para dar consultoria de gestão. E a empresa foi.

Só que a consultoria não faz ideia de como funciona a Secretaria, a gente que teve que dizer pra ela como funciona.

Doria ficou muito irritado, e falou "com certeza tem gente na Secretaria que não trabalha, precisamos fazer essas pessoas trabalharem". Se perdeu completamente o prumo.

 

E as permutas, o que você acha? Não tem um problema ético aí?

Pra mim, o maior problema da permuta é você acreditar que isso suplanta a falta de ações da prefeitura. Esse é o problema. Como se isso fosse solucionar. Então você trazer reforços do setor privado, eu acho ótimo. Isso é uma cultura que a gente não tem muito no Brasil.

 

Mas tá dando certo?

Bateu no teto. Não dá mais. Tem limite, né, tem o limite de quanto o setor privado consegue contribuir...

 

E foi muito?

Fez bastante diferença. A operação Cidade Linda, é na base da colaboração das empresas. Agora, é equivocado achar que não tem custo nenhum, porque mesmo com a doação, a Prefeitura se mobiliza, entendeu? Tem um custo pra Prefeitura, operacional. Isso é difícil ele perceber, que não existe impacto zero, não existe custo zero pra prefeitura. Achar que essa contribuição que as empresas dão é suficiente, e compensa as nossas deficiências, é ilusão.

 

Ficou um bom sentimento entre você e o Doria?

Não [risos].

 

Tem nome o sentimento?

É o sentimento de frustração. O que eu sinto é frustração, e uma frustração acarretada pelo Prefeito. Eu não me frustrei nos meus planos por causa da falta de recursos, da falta de estrutura. O que me impediu de fazer as coisas que a gente tava construindo foi o Prefeito. A visão do prefeito, a leitura que o prefeito fez de como eu trabalhava, e de como eu deveria trabalhar. Então a frustração embaça a imagem dele pra mim, não é a mesma. Antes eu gostava muito do prefeito, eu gostava dele, passei a gostar dele de verdade, hoje o sentimento foi esfriado, sei lá, eu tinha uma admiração por ele, eu tive uma admiração por ele e hoje em dia eu tenho o pé atrás.

 

Você acha que tem a ver Doria e Trump?

(risos) Não, as primeiras comparações que fizeram, eu achei completamente descabidas. O Trump é um fanático, doentio, ególatra, é um cara que incita o ódio. Muito ruim, muito ruim. E é um aventureiro, né? O Doria não é esse cara. Mas aquela coisa do excesso de confiança tá pegando. Uma coisa bem personalista, assim "deixa comigo", sabe?

 

Neste sentido, eles têm essa...

Essa semelhança. Acho que empreendedor é a palavra, né?

 

Você trabalhou com o Serra, com o Alckmin, com o Kassab, e com o Doria. O que você pensa do Serra hoje?

[Com voz embargada] Eu acho que o Serra foi um desperdício de político para o que o país podia e precisava ter. O Serra foi de um cara que eu abominava prum cara que eu passei a admirar e gostar muito. E eu não mudei, não saí desse patamar. Admiro muito, sinto muito por ele pelo fato dele não ter conseguido se eleger presidente, por ele pessoalmente mesmo, por uma coisa de empatia, de amizade pessoal.

 

Foi amizade entre vocês dois esse tempo todo? Porque teve boatos de um romance.

Ah é, tem toda essa história. É, foi (amizade). Forte assim, foda. Gosto muito dele..

Mas ele também não cometeu equívocos, politicamente? Em 2010 por exemplo, quando disse que era contra o aborto. E eu não voto em quem mente.

Ah sim, claro. Foi horrível. Eu acho que a campanha de 2010 foi super equivocada.A campanha quis mostrar um Serra super fofo, carinhoso, amoroso, que "foda-se", ninguém tá preocupado se o Serra é carinhoso. As pessoas votam no Serra porque ele é bom no que ele faz. Não adianta querer fazer do Serra um cara bacana, o Serra é foda. Tem que ser a campanha falando "o Serra é foda, ele é bom pra caralho e foda-se se ele é antipático". Ninguém tem nada a ver com isso.

 

Não dá pra comparar um Serra com um Doria, né?

Não dá, não dá. A não ser pela impaciência (risos).

 

E o Alckmin? É bom pra caralho também, ou não?

Não. O que falta no Alckmin é a tal da impaciência (risos). O Alckmin precisava ter mais faísca, sabe, precisava se conformar menos com as coisas, precisava ter mais gana.

 

O Lula, você acha que foi bom pro Brasil?

Não, foi muito ruim. Muito ruim porque ele praticamente não fez nada do que ele prometia, muito pelo contrário.

 

Socialmente o país não melhorou?

Não. Tanto não melhorou que não sustentou a aparente melhora. E foi uma melhora por meio, principalmente, do acesso aos bens de consumo. O país continuou com uma educação fraquíssima, com uma cobertura de saneamento básico pavorosa, com estradas horrendas, com a violência urbana gigantesca, com uma desigualdade medonha.

 

Teve alguma coisa de bom no Lula?

Deve ter, né [risos].

 

Você acha que Doria vai fazer uma boa prefeitura, no final das contas?

Ele tem secretários de muita qualidade, tem gente muito boa trabalhando na Prefeitura, então isso em si, já é uma garantia. E essa dose que ele tem de inconformismo, de uma impaciência boa, saudável, de querer que as coisas funcionem com os melhores recursos que houver - tecnologia, inovação -, isso é muito legal, vai fazer muito bem para a gestão. Mas isso dele não escutar respeitosamente as pessoas torna o governar muito difícil.

Eu lembro das discussões que a gente tinha por causa de grafite e pichação. Vários secretários disseram: "Mas prefeito? É o caso mesmo de declarar guerra aos pichadores?". E é tão difícil distinguir o grafite da pichação, essa é uma discussão tão antiga. Ele tinha certeza que se você oferecer pro pichador a oportunidade de ser grafiteiro, ele vai deixar de ser pichador [risos]. Ele acredita em fórmulas infalíveis, e quando estamos lidando com gente não é bem assim.

Por outro lado, uma das coisas que me surpreenderam nele, quando eu comecei a gostar do Doria, era que ele se deixa convencer de várias coisas. Isso pra mim é um puta valor. Ele muda de ideia, é permeável.

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