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Jornalismo de Reflexão

Criolo: "Sociedade não precisa entrar nesse túnel não, olha para o céu"

Por Isabella Marzolla

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Por Morris Kachani
Atualização:
 

Grajaú, São Paulo, 1975.

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Kléber Cavalcante Gomes, filho de um ex-metalúrgico e uma professora cearenses, aos 11 anos escreve seu primeiro rap, trazendo à luz suas "subjetividades" dentro do arquétipo da cultura black de resistência. O traço melancólico o acompanha desde então.

Trinta e seis anos depois, em 2011 lança o "Nó na Orelha", considerado o melhor álbum nacional daquele ano pela revista Rolling Stone, com o melhor single do ano, "Não Existe Amor em SP", uma das músicas mais conhecidas de Criolo. Naquele ano ele decide aposentar o "Doido" de seu nome artístico, que fazia mais sentido nas rinhas e batalhas de rap que ajudaram a construir seu "Eu" atual.

Em 1º de outubro de 2018, veio a música e o videoclipe "Boca de Lobo", que trazia uma retrospectiva do ano e reflexão política do Brasil. O clipe foi indicado ao Grammy Latino de 2019 como melhor vídeo em versão curta na categoria geral.

Agora, no ano da pandemia, Criolo está produzindo uma série de projetos musicais e humanitários. Criou seu próprio canal de streaming, o Criolo TV, onde recebe convidados para aprender e refletir sobre a cultura e arte popular brasileira, e no mês de maio iniciou a parceria com o grande Milton Nascimento, um "ser lindo e iluminado", para produzir o EP "Existe Amor em SP", com justamente, a regravação da música "Não Existe Amor em SP" e do single de Milton, "Cais". O lucro do EP é revertido para famílias em situação de vulnerabilidade social na pandemia.

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Criolo conversou com Inconsciente Coletivo na semana passada, em uma entrevista em que falou de racismo estrutural, das angústias do povo, e da arte. Um papo que traz reflexões ao "nosso Buda" interior, se tivermos um.

Todos os dias o povo tá mostrando seu som e promove mudança para o melhor, entende? Isso já está acontecendo, o povo já está falando: "sociedade não precisa entrar nesse túnel não, olha para o céu, olha para os lados, olha para quanta coisa linda somos capazes de fazer, não entra nesse túnel que vocês criaram que é um lugar claustrofóbico, que dá medo, é escuro e frio, onde ficamos perdidos, sem nossos sensores e nossas sensações de equilíbrio, de lugar, de se é dia ou noite e esperamos alguém nos mostrar um pontinho de luz e todos correm para lá."

A arte é transformadora porque ela vem de um lugar muito especial de cada indivíduo. Eu entendo que cada ser humano tem sua construção, seu desejo, sua força, que é o tanto do seu "Eu" e o tanto desse coletivo que o cerca. Então a arte promove você perceber que está vivo, que você deixa sua marca, seu momento, seu olhar na história. Isso é de extrema importância.

O termo "distanciamento social" é um distanciamento físico, porque o social já existe.

A vida do jovem negro já foi lançada à sorte simplesmente por ele ser negro.

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Existe a pandemia da maldade, existe a pandemia de normalizar atrocidades, assim como tentam normalizar o racismo. Dizer que ele não existe, criar uma série de situações para colocar povo versus povo. Mais uma vez a antiga história se repete.

O racismo para o homem negro é a pauta de todo dia, para o homem branco não.

O simples fato de você pensar diferente, de que roupa você usa, de quem você quer beijar, como você quer explicitar o seu amor já é um problema, existe uma série de coisas que automaticamente te transformam em um alvo.

Vão achar todos os tipos de adjetivos, todos os tipos de colóquios para diminuir essa dor e diminuir a questão. E vão botar o simplismo nos estigmas estabelecidos.

Quando você vive em uma massa humana em que a preocupação principal é a sobrevivência, isso molda totalmente o seu emocional.

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Quando a gente cresce em um ambiente hostil como o Brasil, a angústia vem junto. Como não ter angústia? Quem está preocupado com a gente? As histórias que vivi com a minha família... Como eu posso enxergar a tristeza daquele que eu não vejo? Por isso precisamos gritar. A gente vai vivendo nessa panela de pressão gigantesca e parece que se você não gritar, se você não fizer algo muito gigante ninguém vai olhar para você, porque essa normalização o transforma em um ser invisível.

Você começou uma parceria com Milton Nascimento agora na pandemia chamada "Existe amor em SP", com a regravação da canção "Não Existe Amor em SP". Existe ou não existe amor em SP?

Essa resposta vem na proporção da urgência de cada momento de como a cidade respira e se reflete sobre realidades. Existem pessoas que têm empatia e pessoas que não têm. Agora, esses por quês é que são o grande lance.

Essa pandemia externaliza um número maior de pessoas a esse "novo"; do quanto a cidade pode ser acolhedora e do quanto a sociedade pode ser cruel com o seu cidadão.

Existem ações e pessoas que desenvolvem esse desejo solidário e mais humano porque já vem de outras referências ou do seu coração, do mesmo jeito que há pessoas que estão apáticas por alguma situação da vida ou de sua história, e não percebem a necessidade dessa troca mais afetiva, desse olhar mais humano.

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A gente percebe o quanto a cidade se reconstrói, se redescobre, proporcionando coisas tão especiais. E percebemos o tanto de pessoas que não querem essas transformações, e que querem essa construção de progresso só para o seu grupo.

Você acredita que a pandemia e o vírus nos trouxeram uma "mensagem"?

A sociedade é acometida por uma desgraça que assola a todos, propondo-lhe uma doença que não tem cura e que te leva de um jeito muito rápido. O vírus traz só isso.

Agora o modo como cada um recebe as emoções que isso lhe perpassa, corta seu corpo - e para quem acredita em alma -, chega na sua alma e te faz refletir sobre você, seus valores e sua sociedade. É diferente. Isso é como cada um percebe seu olhar no espelho.

É uma sensação da chegada da morte, uma sensação de impotência diante de algo novo e que se apresenta e que você não tem poder. Isso mexe com o seu emocional, isso faz com que você enxergue ou não o mundo de modo diferente, faz com que você consiga perceber uma construção de sociedade e a fragilidade que é manter tudo isso acontecendo do jeito que está.

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Essas sensações que visitam nossa alma e coração de um modo muito bruto são residências emocionais e fazem cada um lidar com esse "novo" [normal] e buscar suas próprias investigações.

Você acha que iremos sair mais conscientes e empáticos da pandemia?

Como as pessoas vão sair a gente não sabe, mas nós entendemos o tamanho do que está acontecendo.

Quando você é visitado por uma transformação de cotidiano que não parte de você, de que você não é dono, como por exemplo essa "parada no tempo", dessa parada na "roda viva" e percebe que não tem como conduzir, isso é muito mais forte.

Sabe aquela brincadeira de criança em que você pega um pneuzinho ou uma roda em um ferro velho e uma vara e fica brincando com a rodinha? A criança faz daquilo um brinquedo, esse círculo que gira e ela tenta conduzir. A brincadeira é achar o equilíbrio daquela roda viva que está a tantos passos à minha frente, em que eu tento não me perder. E quando eu não tenho nada disso, como eu faço?

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Não dá para saber como as pessoas vão sair, mas existe uma massa global se questionando e questionando a sociedade que nós construímos. Talvez isso cause algum tipo de impacto. Agora, o que vai ser desse impacto vão ser as construções de empatia, de afetos, ou entender a importância do que anda faltando e procurar mudar essa realidade.

De que forma a arte resiste nesse momento da história do nosso país?

A arte é transformadora porque ela vem de um lugar muito especial de cada indivíduo. Eu entendo que cada ser humano tem sua construção, seu desejo, sua força, que é o tanto do seu "Eu" e o tanto desse coletivo que o cerca.

Até que chega o momento sublime do encontro total do seu "Eu", que pulsa de um jeito mais forte, e que considera suas energias de bagagem de vida, bagagem cultural, de estrutura e de construção de pensamento.

Então a arte promove você perceber que está vivo, que você deixa sua marca, seu momento, seu olhar na história. Isso é de extrema importância.

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A gente sempre quer se sentir vivo, a gente sempre quer se sentir parte de um todo e perceber que podemos mudar as coisas para melhor, que conseguimos desenvolver coisas lindas e especiais.

Por exemplo, nós [Criolo e Milton Nascimento] tivemos o "Existe amor em SP", nós pegamos toda a energia do nosso encontro, todo o amor, toda a amizade que a gente tem e fizemos um registro musical sublime.

A gente transformou isso tudo e reverberou em afeto. Vamos transformar isso em um grande abraço e tentar construir algo.

É natural, na vida você tem uma lista de necessidades, uma lista de conduta e uma lista do seu "Eu" na hora em que você "bate o cartão". Mas depois que começa a partida, é o seu "Eu" que guia o seu chute na bola.

O que você pensa sobre os movimentos antiracistas e antifascistas nas ruas brasileiras? O seu colega, o Emicida, se opôs ao movimento de sair às ruas literalmente nesse momento da pandemia. Qual a sua posição?

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Toda luta por igualdade é de extrema importância, e a luta contra o racismo é de total importância.

Eu acho que o Emicida nos coloca para pensar em que ações tomar, de que modo lidar, sobretudo em uma situação pandêmica.

A sociedade brasileira tem algumas questões de construção que normalizam uma série de situações, dentre elas o racismo.

A gente vai vivendo nessa panela de pressão gigantesca e parece que se você não gritar, se você não fizer algo muito gigante ninguém vai olhar para você, porque essa normalização o transforma em um ser invisível.

O Emicida só quer que menos pessoas morram porque ele não aguenta mais ver o povo morrendo. As pessoas que foram às manifestações também não aguentam mais ver o povo morrendo.

Parece que as pessoas não percebem o tamanho do racismo. A vida do jovem negro já foi lançada à sorte simplesmente por ele ser negro. E falar isso incomoda tanto algumas pessoas que não conseguem entender, ou entendem, e viram as costas para essa realidade, para o quanto isso é real, porque elas enxergam do ponto de vista em que elas vivem.

Isso é fato histórico de como tudo "isso aqui" [Brasil] foi construído. O simples fato de você pensar diferente, de que roupa você usa, de quem você quer beijar, como você quer explicitar o seu amor já é um problema, existe uma série de coisas que automaticamente te transformam em um alvo. Mas a cor da pele, ela vem ligada - quando falamos de um racismo estrutural - à formação da sociedade brasileira, isso mexe com a política, com a economia. Foram 300 anos de escravidão.

E no meio de uma pandemia, uma população que já é alvo se "joga" mais uma vez e luta contra o medo da morte para gritar "parem de nos matar", encarando a possibilidade da morte vezes dois. Vezes dez, vezes mil. Vezes um bilhão.

Vão achar todos os tipos de adjetivos, todos os tipos de colóquios para diminuir essa dor e diminuir a questão. E vão botar o simplismo nos estigmas estabelecidos.

O ser humano é descartável no Brasil pandêmico?

Existe a pandemia da maldade, existe a pandemia de normalizar atrocidades, assim como tentam normalizar o racismo, dizer que ele não existe, criar uma série de situações para colocar povo versus povo. Mais uma vez essa antiga história que se repete.

Aqui no Brasil o currículo tem que vir com foto, e isso diz muito.

Qual a ideia por trás do Criolo TV?

É uma tentativa de aprender coisas juntos, de refletir. Eu tenho esse desejo de sempre ter conversas necessárias, mil coisas que estão acontecendo urgentes e emergentes, e poder ter espaço para falar sobre isso. Ouvir algumas pessoas é mágico.

Eu lembro de uma professora de história, quando ela passou um documentário para mim em 91 ou 90, "Ilha das Flores". Nossa, aquilo mudou minha perspectiva. E mesmo eu morando numa pobreza, em um barraco, em um sofrimento danado, eu tinha catorze para quinze anos de idade e caramba, meu Pai do céu, aquilo mexeu comigo demais. Então a "visita" de ter pessoas falando coisas assim é transformadora.

Em uma outra semana eu assisti um documentário, que está no DVD dos Racionais, sobre a raça negra em São Paulo e a importância dos bailes black como lugar de construção. Eles eram pontos de encontros de dança e pontos de encontro políticos, de você saber como estava a "quebrada" do outro irmão e o que eles estavam fazendo para melhorar. As pessoas se fortaleciam nesses encontros porque tinha uma troca de ideias.

Assisti "O Menino e o Mundo", com a trilha sonora dos Barbatuques e do Emicida e o filme sobre o Nelson Triunfo.

O canal é um espaço de expressão, de cultura e de irmandade. A gente "tá no baguio" bem antes de algumas esferas da sociedade chegarem no "baguio", mas todos são bem-vindos. Quando a luta é para desenvolver a nossa energia em comunhão contra o racismo, estamos todos aí. Vamos juntos.

Você assistiu o Silvio Almeida no Roda Viva, do dia 22 de junho?

Uma pessoa incrível e que só foi no Roda Viva agora, por quê? Há quantos anos esse pensador já poderia ter sido convidado para o Roda Viva? O racismo para o homem negro é a pauta de todo dia, para o homem branco não. O racismo é pauta emergencial no Brasil desde sua existência.

Eu me incomodo com quem quer por povo versus povo, isso é uma crueldade. Isso não se faz.

Vamos ver se quando passar isso tudo, essa pauta vai continuar. Como o próprio Silvio falou, não existe democracia com racismo. Nunca vai existir país enquanto existir desigualdade social.

Em entrevista para o Bial, junto com Milton Nascimento, você disse que "Os homens são quebráveis e a arte é eterna".

A gente tem muita coisa para aprender e aquilo de bom que a gente constrói pode ficar para sempre. A arte sempre dá um jeito de mostrar para o mundo as nossas possibilidades, e isso é eterno.

Quando você escuta a voz da Elis Regina, você vai se emocionar. A gente fica até sem ar quando escuta a voz de um Milton Nascimento, Margareth Menezes, Alcione. Você vai sentir uma coisa passando.

Ou quando vai aos blocos afros e ouve a força das vozes daquelas mulheres negras que cantam suas histórias e perpetuam a energia da força preta brasileira, você nunca vai se esquecer. É isso que mantém a cultura viva, isso que mantém vivo o conjunto de subjetividades que fazem com que você automaticamente se depare com o jeito de encarar a vida.

No lançamento do seu álbum "Nó na Orelha" em 2011, você disse em uma entrevista para a Trip: "sempre fiz tudo por amor ao rap e por uma vontade muito grande de contribuir. Eu cantava porque tinha necessidade de expressar uma dor que eu sentia, e ela perdura até hoje." Que dor é essa? Você ainda a carrega?

Quando a gente cresce em um ambiente hostil como o Brasil, a angústia vem junto. Quando você tem um pai tão amoroso e maravilhoso como o meu e vê ele viver em uma pressão... Dependendo do lugar que entro, o segurança vai seguir meu pai ou eu, pela nossa cor. Então não tem como a angústia ir embora.

Quando você vive em uma massa humana em que a preocupação principal é a sobrevivência, isso molda totalmente o seu emocional. "Tem que bater cartão, filhote".

Dependendo do período em que você viveu, se alguém te para na rua e você não está com a carteira assinada, pode ir para a cadeia, você é um vagabundo, "pode bater na cara dele". Como não ter angústia? Quem está preocupado com a gente? Histórias que vivi com a minha família.

Aproveitando a referência de um de seus álbuns; em tempos como estes precisamos "convocar nosso Buda". Qual o seu?

Todos temos dentro de nós uma força muita linda de gerar amor, que nem sempre é alimentada. Quase sempre somos testados.

A gente nunca sabe quando "convocamos nosso Buda", mas falar sobre fortalecer o nosso emocional e essa sensibilidade que passa, saber que eu tenho que alimentar aquilo que eu tenho de positivo, já é uma maneira de fomentar nossas esperanças.

Uma reflexão minha, que eu tenho pensado muito. O termo "distanciamento social" é um distanciamento físico, porque o social já existe. Como uma sociedade permite que pessoas vivam abaixo da linha da pobreza? Já permitiram. Um país que permite que as pessoas morram na fila do hospital público e ainda diz que a culpa é do próprio povo.

Como eu posso enxergar a tristeza daquele que eu não vejo? Por isso precisamos gritar.

Há uma luz no fim do túnel para os brasileiros?

É um longo caminho.

Todos os dias o povo tá mostrando seu som e promove mudança para o melhor, entende? Isso já está acontecendo, o povo já está falando: "sociedade não precisa entrar nesse túnel não, olha para o céu, olha para os lados, olha para quanta coisa linda somos capazes de fazer, não entra nesse túnel que vocês criaram que é um lugar claustrofóbico, que dá medo, é escuro e frio, onde ficamos perdidos, sem nossos sensores e nossas sensações de equilíbrio, de lugar, de se é dia ou noite e esperamos alguém nos mostrar um pontinho de luz e todos correm para lá."

Tem algo a acrescentar, acha que disse tudo?

Acho que eu não disse nada e só tenho a agradecer.

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