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Jornalismo de Reflexão

Crônica do desemprego

Por dentro da "fila da esperança", no Vale do Anhangabaú, pela qual já passaram 50 mil cidadãos da base da pirâmide em busca de oportunidades que lhes pagassem de R$ 1,2 a R$ 1,5 mil aproximadamente

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Por Morris Kachani
Atualização:
 Foto: Estadão

Qualquer pessoa com um pingo de sensibilidade se impressionou com as imagens veiculadas pela mídia, das enormes filas que se formaram no Vale do Anhangabaú, há duas semanas, com algo em torno de 6 mil pessoas da base de nossa pirâmide social em busca de uma vaga de trabalho, com faixa salarial oscilando na média dos R$ 1,2 a R$ 1,5 mil.

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Olhando a fila de perto, eram pessoas na esmagadora maioria sem ensino médio, muitas delas sem sequer o fundamental completo, vindas dos rincões da capital paulista, ou das ruas mesmo, algumas poucas alcoolizadas ou drogadas, gente de toda idade, jovens, velhos, homens, mulheres, com a dignidade corroída - a ausência de trabalho pode facilmente fazer a pessoa perder a referência.

Uma massa silenciosa, com cada um pensando no seu próprio propósito, sem brilho no olhar. E sem muita consciência política. Com cara de sofrimento, mas ao mesmo tempo de esperança. Com dificuldade de conhecimento até sobre o que lhes é de direito. Só mesmo indo ver de perto, para crer.

 Foto: Estadão

Fica difícil realmente de articular a ideia de que na mesma semana, em um estranho contraponto, apareceu um promotor chamando de miserê os seus vencimentos mensais de R$ 24 mil, que com os penduricalhos lhe renderam R$ 60 mil de janeiro a julho.

São realidades muito díspares claro, talvez incomparáveis - apenas dois recortes, entre tantos outros. Mas fazem parte de um mesmo país. E de uma mesma reforma da previdência...

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(Em artigo publicado na Folha de S. Paulo no domingo, Armínio Fraga comentou que o funcionalismo e a Previdência no Brasil consomem 80% dos gastos públicos; que o Brasil é o país que menos transfere para quem ganha menos e dos que mais transferem para quem ganha mais; que em termos absolutos, as transferências para os 20% mais ricos representam quase a metade do total, com destaque para aposentadorias e pensões. Que em resumo, no Brasil, o Estado age como um Robin Hood às avessas).

Coaching de pobre

Este foi o quarto mutirão do emprego coordenado pela UGT (terceira maior central sindical) e organizado pelo Sindicato dos Comerciários, Padeiros e da Limpeza Urbana. Os outros três, realizados em julho e agosto do ano passado, e em março deste ano, também foram sucesso de público. Só no de março, compareceram 15 mil. Neste último, 6 mil.

Só que das 14 mil vagas oferecidas no total dos quatro mutirões, apenas 60% delas foram preenchidas. É que vontade não falta. Qualificação técnica, sim. Por incrível que pareça, para os postos mais simples que a indústria do comércio poderia oferecer, como caixa de supermercado, atendente de fast food, auxiliar de limpeza, limpador de vidro, ajudante de peixaria, de açougue, de padaria, operador de motosserra, vigilante, eletricista, estocagem, telemarketing, recepcionista, servente de pedreiro...

Pois então, passar pelo filtro dos 30 RHs das empresas contratantes que estavam instaladas com guichê e tudo nos 13 andares do edifício do sindicato, como Grupo GPA (Pão de Açúcar) ou Magalu, não era mole. Indo um pouco mais longe, a IBM por exemplo não preencheu nenhuma das 100 vagas oferecidas, pois era exigido um conhecimento básico de inglês e alguma familiaridade com tecnologia.

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Para contornar este desencontro entre RHs e aspirantes, a organização dos mutirões conseguiu disponibilizar nesta última versão alguns cursos técnicos oferecidos pelo Senai (1,3 mil vagas) e pelo governo estadual (1 mil vagas). A Magalu inclusive criou uma sala especial onde rodava uma apresentação da personagem virtual Lu sobre como montar um currículo adequado e mais, sobre como se utilizar das ferramentas virtuais. Pois hoje em dia as redes sociais e o LinkedIn podem ser decisivos na busca de uma colocação.

Mas nada disso é muito simples, especialmente para quem não tem acesso constante à internet.

Dizia um folheto distribuído nas filas,

"Dicas para uma boa seleção

 - Na data agendada, comparecer em trajes formais;

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- Moças: não usem saias curtas, decotes, cores fortes, maquiagem exagerada ou excesso de acessórios;

- Rapazes: barbeiem-se e mantenham as unhas limpas;

- Verbalização é essencial! Não utilize gírias e não masque chiclete"

Nele também apareciam inscritas as universais dicas de postura corporal e gestos; aperto de mão firme; ouvir antes de falar e pontualidade. Não mentir onde mora também foi bastante martelado. É que muitas empresas só empregam quem mora perto relativamente do local indicado de trabalho.

Outra dica importante: não aparecer com cabelo desalinhado, ou chegar sem banho tomado...

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A organização da fila era de admirar. Houve 4 casos de desmaio prontamente atendidos. Gente com mais de 60 anos era encaminhada diretamente para retirar uma senha. Na parte de fora, foram instalados toldos ao abrigo do sol e da chuva (e fez muito calor naquela semana). Água potável à vontade, oferecida pela Sabesp. E dentro do prédio, o aspirante a uma vaga ganhava de prêmio um misto frio e a esperança de ser contratado, depois da triagem e entrevista com algum dos RHs das empresas.

 Foto: Estadão

Por conta disso tudo as brigas na fila até que eram incomuns. Um barril de pólvora sem faísca para queimar, digamos.

Ganharam holofotes da mídia os relatos de gente que madrugou na fila, 8, 10, 12 horas de fila em pé, gente que veio de outros Estados - e eram vários -,

e a história de um homem de 70 anos, desempregado havia quatro meses. José Augusto de Lima, com mais de 30 anos de experiência como motorista, buscava uma vaga. Chegou a vender camiseta em dia de jogo do Brasil, trabalhou como passeador de cachorro. José Augusto foi chamado para uma empresa, mas acabou não gostando muito do que ofereceram. Era uma vaga de estoquista, e ele procura outras coisas. Enquanto isso se vira com sua aposentadoria. Vive só.

Não há pesquisa sobre o perfil do desempregado que vai buscar uma vaga no mutirão. Decidi conversar com Ricardo Patah, presidente do sindicato, e Cleonice Caetano Souza, diretora de assistência social e previdência do Sindicato dos Comerciários há 25 anos, e Rizanda Rodrigues, assistente social, em uma tentativa de compô-lo. Com base na percepção deles, aprendi algumas coisas.

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Patah lembrou que são 13 milhões de desempregados no Brasil, 4 milhões no Estado de São Paulo e 1,5 milhões na capital. Comentou que o mutirão dos comerciários é diferente dos oferecidos por outros setores como o bancário, indústria ou tecnologia. É uma massa mais simples, a maioria, uns 70%, procurando trabalhar para pôr pão na mesa, em situação deplorável. O "plano de carreira" seria justamente começar pelo comércio, áreas de varejo e alimentos, quem sabe aproveitando a época do Natal, para depois galgar outras atividades.

No comércio é tudo muito rotativo, lembra Cleonice. Não é o emprego que as pessoas gostariam. Querem trabalhar porque precisam sobreviver. Mas a maioria se recusa de dar expediente em fim de semana e não é incomum ficarem apenas de 1 a 2 meses em serviço. Aceitam qualquer oferta na hora porque estão precisando mas muitas vezes as empresas abrem mão de contratá-los, porque sabem que sairão quando puderem.

De acordo com Patah o principal perfil de quem busca uma vaga seria justamente o jovem de 25 anos à procura do primeiro emprego. Se bem que aumentou consideravelmente a faixa etária dos 50 e 60. Se estão revoltados com o país ou com a própria situação, não desabafam. Acham que é um espaço neutro. Só desejam ser bem atendidos.

A maioria segundo Cleonice, chega de lugares onde faltam as políticas públicas, de famílias desestruturadas, sem referência, precisando de um direcionamento. Falta planejamento. "Quando a gente sonha e busca, consegue".

Ela comenta que os evangélicos são os que mais se enquadram nas vagas, já vêm com roupa adequada. Há 165 mil fieis da Igreja Universal oferecendo ajuda e assistência nas ruas.

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Rizanda acrescenta que os aspirantes chegam principalmente do entorno da capital, tipo Itapevi, Taboão, Franco da Rocha, ABC, ou dos pontos mais distantes das zonas leste e sul. Que a maioria dos moradores da região central já está empregada.

Embora sejam minoria, na fila há pessoas com graduação universitária. Professores de contabilidade por exemplo, querendo trabalhar de qualquer coisa. Bate um desespero, se colocam à disposição da empresa, falam literalmente assim: "estou à disposição de vocês". Mas a pessoa tem que ter um objetivo... não basta ela dizer que tem habilidade para exercer 10 funções... os RHs das empresas se dão conta disso, e buscam pessoas com um propósito.

Na fila, psicologicamente, a auto estima é zero. Quem chegou na madrugada não encontrou outro caminho. A maioria passou por muitas entrevistas, e o mutirão é o último degrau.

As pessoas estão muito inseguras, não está clara a perspectiva. À parte, muitos resistem às mudanças e implicações da revolução digital. O indício de depressão é comum, embora muitos confundam depressão com estresse.

A revolta interna é amortecida pela preocupação com comida... perdem a noção de tudo.

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Houve o caso de uma mulher cujo currículo foi recusado, não tinha perfil para a vaga. Xingou, quis bater, começou a falar que isso era uma enganação. De um sujeito com graduação em 2 faculdades, 22 anos de experiência em bancos, mas não se atualizou e não acha mais um posto de trabalho. Da senhora que apareceu de bengala mancando, à procura de emprego. Não conseguia ficar em pé. Foi levada para atendimento médico. Da mulher desempregada que veio com o marido e com os filhos, e mora distante... a empresa não quer pagar transporte para que venha trabalhar, da pessoa sentar chorando. Acaba voltando para casa ou passa fome mesmo.

 Foto: Estadão

Rizanda diz que já desacreditou das políticas públicas. Que as pessoas precisam ser ouvidas para serem direcionadas. Que não há praticamente trabalho social efetivo do governo ou das escolas... nem municipal nem estadual nem federal. O atendimento exsite, mas é mal feito e burocrático. Não há acompanhamento.

O que existe são algumas igrejas, que dão sopa, pão, corte de barba e cabelo, mas não ferramentas de inclusão.

As pessoas às vezes não sabem nem que tem UBS no seu bairro. Ninguém tem tempo. Uma procura infernal de tudo e uma falta de assistência infernal de tudo.

Recomenda que os jovens busquem faculdade e estágio. Que trabalhem como voluntários naquilo que amam, enquanto não conseguem trabalho.

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Patah define o desalento como sendo a situação dos que não acreditam em nada e não contam com nada. São ajudados pela família, por alguma instituição ou vivem na rua. Não se enxergam incluídos em lugar nenhum. Seriam eles 4,9 milhões, a se somarem aos 13 milhões de desempregados.

Atribui quase toda a fila à recessão, mas lembra que vivemos uma quarta revolução industrial, com a inteligência artificial e busca de novas alternativos. Que enfim, o emprego de amanhã será diferente. Lembra também que a reforma trabalhista ampliou a informalidade, que já era grande.

Patah defende um regime previdenciário único, com teto de R$ 5,6 mil. Um conceito de certa forma inédito de aposentadoria igual para todo mundo. Procurou senadores, ministros, deputados, a defender o ponto de vista de que a Bíblia fala que todo mundo é igual. Todos demonstraram sensibilidade. Mas na hora do vamos ver... é o Estado agindo como Robin Hood às avessas.

Patah lembra que em 2016, enquanto cerca de 29 milhões de trabalhadores aposentados recebiam, em média, R$ 1.500 por mês, 980 mil servidores públicos -menos de 1 milhão- recebiam, em média, R$ 9.000 mensais.

"O regime cria uma equidade fundamental que é a de corrigir a lógica perversa de transferir para os mais pobres a responsabilidade de sustentar os privilégios das pequenas, mas custosas elites. Vale lembrar que o nosso sistema tributário pesa mais para quem ganha menos e mereceria rapidamente ser reestruturado.

Quem quiser ter uma aposentadoria acima do limite estabelecido pela lei, teria que ter acesso a um fundo de previdência complementar a ser instituído sem o aporte de recursos públicos. É lógico que a pessoa interessada teria que pagar para ter esse privilégio".

 Foto: Estadão

 

 

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