PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

Jornalismo de Reflexão

Miguel Nicolelis: "só estamos na expectativa de quando a variante Delta vai explodir aqui no Brasil"

Entrevista com o neurocientista e professor titular da universidade Duke, Miguel Nicolelis.

Por Morris Kachani
Atualização:
 

"O quadro a curto prazo está caindo, mas isso era esperado. É como uma onda, um tsunami, que "varreu a costa" e agora voltou. O tsunami da segunda onda brasileira voltou com o mar, só que ela está pegando energia e essa energia vai reproduzir aqui, de alguma maneira, a dinâmica que está acontecendo nos outros países. Então quem não está vacinado, quem é jovem, pessoas com uma dose só e não estão protegidas completamente, são suscetíveis à variante Delta".

"45% das amostras no Rio de Janeiro já são da variante Delta. Todo mundo está achando que já acabou, já marcaram Carnaval, já tem pacote de Réveillon sendo vendido. Enquanto o mundo inteiro está explodindo [de casos de variante Delta], nós só estamos na expectativa de quando vai explodir aqui no Brasil".

Assista à entrevista: https://youtu.be/o4uxhSpPy8A

PUBLICIDADE

"A variante Delta parece ser bem pior, bem mais transmissível e parece afetar de maneira importante pessoas mais jovens. Então a probabilidade de algo sério ocorrer aqui é real, porque se no Reino Unido que tinha mais de 50% da população vacinada você teve essas explosões [de casos], no Sudeste asiático e na Austrália também, é quase inconcebível que a gente não tenha algo assim aqui. A única esperança era que a vacinação fosse mais rápida e que a variante Gama ganhasse a população de suscetíveis que ainda existe no Brasil.

O estágio em que nós estamos é uma disputa entre a variante Gama e a variante Delta. E essa notícia do Rio de Janeiro sugere que essa disputa está sendo ganha pela variante Delta, como era esperado, só que tá levando um pouco mais de tempo aqui, porque a vacinação avançou, só que avançou timidamente. Nós estamos chegando a 20% só, de pessoas com as duas doses".

Publicidade

"Nos Estados Unidos o perfil dos casos, que estão sendo de 150 mil por dia, é de pessoas não vacinadas e jovens. As internações estão entre 20-30 anos, a mediana. Isso é muito abaixo do que era na primeira onda, há muitos adolescentes e crianças começando a ter essa variante"

"O plano ideal neste instante seria - teríamos que ter tido um rastreamento genético enorme para saber quem está ganhando essa guerra [Gama VS Delta] - manter o uso de máscara, restringir aglomerações, não voltar à aula, não abrir comércio, não ter público em futebol, até a nossa situação ser mais estável. Em certos lugares nós teríamos que fazer lockdown. Se o Brasil tivesse fechado o espaço aéreo em março nós não teríamos recebido a explosão da variante Delta"

"Tivemos um pico imenso [da pandemia] em março e abril, que foram os meses mais letais da nossa história. Quando você tem um pico desse, o vírus fica sem acesso a grupo suscetíveis porque muita gente é infectada muito rapidamente. É por isso que tem uma queda. E é essa queda que nós estamos experimentando só que em um patamar ainda muito alto. Ontem mesmo nós tivemos mais de 1.200 mortes e um número de casos grande".

"Aqui [no Brasil] todo mundo "jogou a toalha", todo mundo já decretou vitória. (...) O patamar em que nós estamos, até semana passada, era igual ao pico da primeira onda, no final de julho do ano passado - os números são idênticos. E no pico da primeira onda, no ano passado, nós estávamos todos desesperados, só que nós normalizamos tudo isso e os gestores decretaram vitória por decreto. Então resolveram abrir tudo, o espaço aéreo brasileiro está aberto sem restrições"

"Agora você começa a ver um acúmulo de casos de pessoas que têm Covid crônica, que no Brasil são milhões. Crônica significa você ficar com o vírus durante meses e depois de meses você continua tendo sintomas graves, como insuficiência respiratória, insuficiência cardíaca, insuficiência renal, distúrbios neurológicos, distúrbios psiquiátricos. Tem agora diabete induzida por coronavírus, por lesão vascular no pâncreas, síndrome gastrointestinal, ou seja, todos os órgãos do corpo humano podem ser atacados pelo vírus cronicamente"

Publicidade

"Quando você tem 150 mil casos por dia nos Estados Unidos, a chance de gerar novas variantes é muito grande. E as mortes começaram a subir de novo nos Estados Unidos, o site do New York Times mostrou que o número de mortes aumentou nos últimos 14 dias em 50%, e ainda está na casa de 400 mortes, o que é baixo para eles que tiverem 4, 5 mil por dia. (...) Todos os Estados republicanos, que apoiam o Trump cegamente, são responsáveis por esse surto. Só que isso está levando ao aumento de casos na Califórnia, em Nova York, que estavam com vacinação em um nível avançado"

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

"A novidade foi o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças, em português) agir precipitadamente e declarar vitória, que não precisava mais usar máscara, fazer reuniões, que podia ter jogo de baseball, de futebol americano, basquete, quando era óbvio que uma população de 50% não tomaria a vacina.

O vírus é o seguinte: ele bate em uma "parede" - "parede" são pessoas vacinadas - e aí ele procura grupos suscetíveis. Quando ele encontra um grupo suscetível ele começa a se espalhar, quando ele se espalha ele sofre mais mutações, com mais mutações ele pode gerar variantes que se adaptam como Darwin previu em 1859. As pessoas podiam ter lido o que ele falou"

"Nós temos um vírus tão mortal quanto o coronavírus, que eu chamo de vírus informacional, que se espalha pela hiperconectividade digital que nós atingimos no planeta e infecta o cérebro das pessoas, apelando para os preconceitos e as crenças mais primitivas e absurdas que existem flutuando dentro do cérebro à espera da comprovação do mundo exterior.

Quando você tem o [agora ex] Presidente dos Estados Unidos dizendo absurdos na televisão toda noite mandando as pessoas ingerirem ou injetarem desinfetante ou tomarem água sanitária para matar o vírus..."

Publicidade

"A Eurocopa foi uma das razões pelas quais explodiu o número de casos na Europa. A OMS (Organização Mundial da Saúde) calculou em 10% no continente europeu o aumento de casos pela contribuição dos jogos. Quer dizer, é um absurdo. Você vê as Olimpíadas ocorrendo em Tóquio e aqui no Brasil tem time de futebol reivindicando ter público nos jogos, entrando na justiça para ter público nos jogos"

"O vírus não existe enquanto organismo unitário, não tem sentido falar de uma partícula viral porque ela não tem significância viral, porque ela não tem maquinaria proteica, ela não produz proteínas, ela só é um carrier, um carregador de uma bomba de RNA ou DNA. O vírus é um organismo coletivo, ele adquiriu poder agindo como um grupo social gigantesco. Você tentar combater um vírus coletivo com atitudes individuais, cada um atirando para um lado, seja uma pessoa, seja um Estado, um município ou um País não vai dar, ele [vírus] vai ganhar essa guerra.

Então os países que agiram coletivamente obtiveram sucesso. Mesmo assim o sucesso é temporário, veja o que está acontecendo na China".

"A variante Gama é conhecida no sistema imunológico do País como um todo e a variante Delta traz complicações, traz mutações estratégicas naquela proteína S que se conecta com as células das mucosas. As vacinas protegem contra a Delta mas há uma queda de efetividade, é uma queda que diferentes estudos mostram diferentes resultados, mas [em geral] a efetividade cai de 90% da Gama para 70/60% com a Delta. A proteção é boa, mas a qualquer momento a Delta pode sofrer uma mutação. Na Índia apareceu uma mutante chamada Delta Plus".

"A pandemia fez a política brasileira derreter, ela expôs a falta de preparo da classe política como um todo para os desafios do século XXI e mostrou que a classe política nesse momento não tem nenhuma condição de dialogar com a ciência, porque a gente como cientista está habituado a debater ideias, em um contexto em que quem tem o melhor argumento, é quem ganha. Eu enfrentei embates falando sobre a pandemia com políticos brasileiros e fiquei chocado com o grau, às vezes até de grosseria, da pessoa achar que é uma discussão pessoal, mas na verdade quando você está recomendando lockdown, você está recomendando para salvar vidas.

Publicidade

Claro que a maior responsabilidade é do governo federal, que é provavelmente o pior da história do Brasil, desde a monarquia, da pré-monarquia. Duvido que os tupis-guaranis tinham um "governo" pior do que estamos vendo neste momento".

"Essa não vai ser a última pandemia que vamos enfrentar nesse século. Ela foi a primeira de grande porte, mas não vai ser a última pelo aquecimento global, pela destruição de ambientes"

"No Brasil os políticos precisam aprender a vestir os sapatos da humildade e dialogar com a ciência".

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.