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Jornalismo de Reflexão

"Não dá mais para fazer de conta que não existe o fenômeno trans"

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Por Morris Kachani
Atualização:

No complexo do Hospital das Clínicas em São Paulo, funciona o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, por onde já passaram cerca de 560 crianças e adolescentes, trazendo a questão sobre não se identificarem com seu sexo biológico.

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Todos são submetidos a uma avaliação médica e, dependendo do caso, podem passar por tratamento hormonal e cirurgia.

Em outubro do ano passado, entrevistei o coordenador desta iniciativa pioneira, o psiquiatra Alexandre Saadeh - https://brasil.estadao.com.br/blogs/inconsciente-coletivo/o-universo-trans/.

Esta semana voltei a procurar o doutor Saadeh, para repercutir as declarações recentes da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, e um áudio do jornalista Alexandre Garcia que está circulando pelas redes, https://www.youtube.com/watch?v=LorbuSHGDhE.

Diante do momento político, entre os pacientes do ambulatório e suas famílias, Saadeh reporta uma certa apreensão, mas garante que até agora, fora algumas declarações circunstanciais, nada mudou.

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É correto se falar em ideologia de gênero ou este é um termo criado por seus detratores?

Esse é um termo criado aqui no Brasil. É um termo errado, controverso e incoerente. O que existe é a Teoria Queer, criada por Judith Butler, filósofa norte-americana, que rebate a fundamentação biológica para o sexo e para o gênero.

A teoria queer, da Judith Butler, tem uma importância muito grande na cultura ocidental hoje; especialmente para o neo feminismo, e para os movimentos gays. Porque ela abarca essa questão do social, do cultural, da aceitação; é contra o machismo, o patriarcado, essas questões todas. E fala de gênero como uma construção sociocultural.

No livro "Problemas de gênero", a Judith Butler fala que o sexo biológico não importa, o que importa é a determinação sociocultural que vai dizer sua identidade de gênero. É a sociedade que vai construir isso de uma maneira performática em você. E ela acha que as questões trans são uma forma revolucionária de se opor a essa restrição de gênero aplicada a todos nós.

A teoria queer tem uma importância, um grande valor. Mas, por exemplo, não fala de crianças trans. Se falasse, já estaria contrariando a teoria toda. E não aborda o fato de se ter muito mais mulheres do que homens trans. No mundo machista faria mais sentido ter mais homens trans do que mulheres trans. E não é o que a gente vê. Tem muito homem abandonando esse poder pra virar mulher.

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A ministra e o jornalista insistem na identidade biológica: ninguém nasce com gênero, nasce com sexo. Na biologia, temos machos e fêmeas. Quando meninos pensam como meninas, ou meninas pensam como meninos, isso não muda o sexo.

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Até aí correto, nascemos machos ou fêmeas ou algo entre os dois, interssexos. Essa é nossa base biológica. Daí, por volta dos três ou quatro anos de idade, expressamos nossa IDENTIDADE DE GÊNERO, que não é gênero (masculino ou feminino e social e culturalmente determinado). Identidade de gênero é a noção que cada ser humano tem de ser homem ou mulher ou algo entre essas definições. Enquanto o sexo é biológica e anatomicamente determinado, a identidade de gênero é subjetiva. Tem uma base biológica, mas contribuições do ambiente. É nessa idade que começamos a expressar se somos homens, mulheres ou algo entre esses polos.

O que tem sido feito e falado efetivamente nas escolas? Fala-se em doutrinação...

Em alguns lugares pode até ter e existir doutrinação, dizendo que ser homem ou mulher é algo social ou cultural, mas não é na maioria das escolas. O que acontece é que as escolas, na sua função cidadã, favorecem a integração de crianças com questões de identidade de gênero, estabelecendo que brinquedo não tem sexo, muito menos as cores. A grande maioria das crianças, assim como na sociedade, é cisgênera (não tem questões entre seu sexo e sua identidade de gênero), mas algumas são trans, ou seja, sua identidade de gênero não é congruente com seu sexo. Essas crianças podem sofrer bullying e até mesmo abandonar a vida escolar. Não vejo doutrinação na grande maioria das escolas que favorecem o convívio com as diferenças.

Como falar sobre transexualidade com uma criança ou um jovem? 

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Geralmente o tema vem à tona por conta da mídia ou da presença de crianças com questões de gênero na escola. O ideal é abordar o tema, sempre que levantado ou vivenciado. Não dá mais para fazer de conta que não existe o fenômeno.

Em que medida se deve levar adiante o discurso de um menino que pensa como menina? Por ser um menino justamente, e não um adulto, qual o nível de autonomia e confiabilidade que se deve dar a ele?

O mesmo nível de autonomia que qualquer criança tem para falar sobre si mesma. Quando sente dor ela diz isso e todos acreditamos, mas quando se fala em identidade de gênero a coisa fica diferente. Como se uma criança não pudesse expressar se é menino ou menina. E estamos falando de uma vivência consistente, persistente e insistente, não uma brincadeira.

Comente a frase "meninos vestem azul e meninas vestem rosa". E que ninguém vai impedir de chamar as meninas de princesa e os meninos de príncipe.

Essa frase reflete uma imensa maioria que busca a adequação a esse padrão, mas não reflete a totalidade das crianças. Temos sim meninos que vestem rosa, porque são meninas e se sentem e percebem dessa maneira, e o contrário. Aliás, em casos mais raros, não existe nem uma definição; algumas crianças variam de um polo ao outro por anos; alguns a vida toda.

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Como os jovens que estão em tratamento e suas famílias, têm reagido a este momento político? Há medo?

Sim, mas até agora, fora algumas declarações circunstanciais, nada mudou. Não acredito que devamos ter medo, mas sim ter clareza e fundamentação científica para afirmar e esclarecer pontos duvidosos.

Citando o presidente da Associação Americana de Pediatria, e o chefe de psiquiatria da universidade de John Hopkins, Alexandre Garcia diz que a administração de hormônios como testosterona para meninas e estrogênio para meninos durante a puberdade, aumenta a pressão cardíaca, pode causar coágulos na circulação e riscos de AVC e câncer. Faz sentido?

Essa associação é minúscula dentro da Pediatria norte-americana e essa posição de ser contra o acompanhamento médico e psicológico de crianças com disforia/incongruência de gênero é absurda para a grande maioria dos pediatras e psiquiatras norte-americanos. O professor da John Hopkins é conhecido por suas posições contra a transexualidade há anos, mas não há nenhum trabalho científico que corrobore suas posições. Há sim muitas evidências que contrariam essa posição tendenciosa dessa associação e desse professor.

...E que o risco de suicídio é 20 vezes maior para quem usou hormônio ou fez cirurgia.

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Só para casos mal acompanhados ou diagnosticados (não por ser uma doença, mas por ser uma condição clínica que exige intervenção médica e essa só pode ser realizada frente a uma formulação diagnóstica).

Como países progressistas ou com a questão dos diretos humanos mais desenvolvida, como por exemplo no norte da Europa, lidam com a transexualidade?

De maneira natural, reconhecendo que o fenômeno existe desde a infância e necessita de acompanhamento amplo em termos de saúde.

Na entrevista anterior, você comentou que o Brasil tem uma questão com a transexualidade que remete aos anos da ditadura. Por que esta questão incomoda tanto?

Por colocar em xeque verdades absolutas, preto no branco, o que pode aparentemente gerar confusão na cabeça das pessoas. É justamente o contrário. Quem é homem, continuará sendo homem, quem é mulher, continuará sendo mulher, apesar de que não vai ter relação direta e óbvia com o corpo, com o sexo. Esse poderá ser mudado, mas sempre depois de muito acompanhamento e atenção.

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