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Jornalismo de Reflexão

O cuidado com a saúde mental dos bebês em tempos de isolamento social

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Por Morris Kachani
Atualização:

"Um ano e meio de pandemia, um pouco mais, o que é na vida de um adulto? É bastante, mas nós já estamos bem mais estruturados. Agora o que é um ano e meio para quem tem três, quatro, cinco ou seis anos? Para quem está na primeira infância? É um tempo muito grande e no qual vão acontecendo muitas transformações de estruturação, então para uma criança pequena isso significa um tempo muito maior, o que nos leva então a perguntar o que vai acontecer em um contexto pós-pandemia"

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"O desenvolvimento dos bebês não é autônomo, o desenvolvimento depende tanto de fatores orgânicos quanto de aspectos que têm a ver com a relação com o outro"

"(...) A gente vai vendo isso, mães cuidando cada vez mais sozinhas dos seus bebês. E a pandemia agrava ainda mais essa situação de isolamento, agrava ainda mais essa impossibilidade de circulação coletiva. A gente foi se encontrando com bebês dentro de casa que não podiam ver os outros parentes, com pais muitas vezes ocupados trabalhando virtualmente e sem contar com uma instituição, que tem sido muito importante na condição de co-cuidadora, que é a creche, que é a educação infantil, que é muitas vezes aonde as crianças vão se encontrando com o "quintalzinho", com os semelhantes e com outros adultos co-cuidadores"

"A gente veio de uma lógica na qual fomos testemunhando muitas intoxicações eletrônicas nas crianças, ou seja, crianças deixadas a sós com aparelhos eletrônicos"

"Aumento de situação de ansiedade, atrasos no desenvolvimento, situações de agressão e autoagressão, situação de intoxicações eletrônicas, ou seja, a gente vai se encontrando com todo um agravo de sofrimento em situações de isolamento"

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Assista à entrevista: https://youtu.be/XDzZ0fgKnD0

"Dá na mesma passar a pandemia em uma casa onde cada um tem o seu quarto, acesso à internet ou em uma casa que tem pouco cômodos, muita gente e não acesso à virtualidade? Não, não é igual psiquicamente"

Na pandemia, com o isolamento social e creches sem horários presenciais por mais de um ano, a formação das crianças e bebês foi impactada com novos desafios especialmente para as mães, que muitas vezes se tornam as únicas disponíveis para suprir a necessidade de estímulos que os pequenos precisam.

Além disso, a desigualdade social - ainda mais exposta e acentuada durante a pandemia - influencia em cheio na moradia que as famílias vivem. Passar a quarentena em uma casa onde cada um tem o seu quarto e acesso à internet é relativamente mais fácil do que em uma casa que tem poucos cômodos, muita gente e sem acesso à internet, do ponto de vista psíquico. 

Já dizia Freud, que a época mais importante para a formação de nosso caráter, onde as experiências, vivências e relações familiares, sociais, culturais e educacionais influenciam nosso desenvolvimento e moldam o adulto em que nos transformamos - essa época é a primeira infância, e por isso a saúde e os estímulos mentais às crianças e bebês são considerados essenciais.

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Mesmo ainda não recebendo a devida atenção e reconhecimento, inclusive entre profissionais de saúde, o sofrimento psíquico entre crianças e até em bebês existe. Hiperatividade, TDAH, ansiedade, depressão, bipolaridade, entre outras, são doenças amplamente nomeadas e tratadas em adultos ou adolescentes, mas que podem passar despercebidas na primeira infância.

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Como praticar a psicanálise com um bebê? Jovens e adultos costumam expressar o que sentem e pensam através da fala e do comportamento corporal. No caso dos bebês, isso é transmitido principalmente através do brincar e do corpo.

O bebê revela o seu interior pelo olhar, pela voz, pela postura corporal e também por sua organização ou desorganização de seus hábitos de sono e de alimentação.

Bebês e crianças menores são dependentes de um outro para viver, assim como utilizam-se dos pais para nomear suas emoções e sentimentos. A interpretação da mãe, pai, professores e cuidadores é fundamental para o desenvolvimento interpessoal e emocional.

Nesta conversa esclarecedora com a psicóloga e psicanalista Julieta Jerusalinsky, especializada em clínica com bebês pela FEPI-Argentina, a saúde mental das crianças e bebês e o estímulo precoce deixam de ser um tabu e se transformam numa solução alternativa para entender e melhorar o desenvolvimento desse grupo, que são os "adultos de amanhã".

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Julieta tem mestrado e doutorado em Psicologia Clínica pela PUC-SP e é professora de pós-graduação nos cursos de especialização em "Clínica Interdisciplinar em Estimulação Precoce" e "Clínica Interdisciplinar dos Problemas do Desenvolvimento Infantil".

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"Justamente a psicanálise traz importantes contribuições ao cuidado, à saúde mental dos bebês e dos "mais pequenos", ainda que isso possa produzir muita surpresa e muito espanto na contemporaneidade.

Há mais ou menos 120 anos perguntaram para Freud, "é possível que crianças façam análise? Isso não é impossível, isso não é perigoso para elas?". Freud respondeu que não, que de fato as crianças sofrem, que de fato as crianças podem se beneficiar de ter um espaço de elaboração dos seus conflitos"

"A maneira que um bebê está na relação com o outro tem consequências para o seu sono, para a sua alimentação, para a sua modulação emotiva, para o seu desejo de falar ou não falar, olhar ou não olhar ou mover o corpo".

"Quanto menor se é, quanto menos idade se tem, mais importante é a presença de um outro de carne e osso que se afete pelo que afeta um bebê, ou seja, a maneira que a gente tem de exercer os cuidados com o bebê.  O exercício da maternidade não é instintivo, ele depende de toda uma enorme transmissão simbólica consciente e inconsciente. Quando uma bebê chora, como é que uma mãe sabe o que ele quer? Ela interpreta. Isso é interessante. A primeira interpretação que a gente recebe na vida não é a do psicanalista, é da mãe".

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"Desde o início a relação da mãe com o bebê é atravessada pela cultura, e digamos que a cultura não tem ajudado muito o exercício da maternidade, porque a gente vai encontrando com mães que estão solitárias no cuidado com o seu bebê e quem acaba sendo o seu interlocutor é o "doctor [doutor] Google". E o "doctor Google" não é um bom interlocutor, porque ele não interpreta um contexto.

A sobredeterminação algorítmica do sujeito contemporâneo vai repetindo uma ideia de se patologizar "enigmas" que seriam respondidos na relação, ou seja, dando a chance de que uma mãe e o seu bebê, apoiados em um coletivo, atravessassem os enigmas e produzissem respostas adequadas, um "saber fazer singular", onde vá se considerando a subjetividade desse bebê.

Em outras palavras, a cultura contemporânea tende a objetificar muito os bebês. Na pandemia, esses cuidados foram acontecendo de uma maneira ainda mais isolada, isso recrudesceu"

"Há uma especificidade que cuida dos bebês chamada estimulação precoce. É o tratamento de bebês de 0 a 3 anos. E a estimulação precoce pode ser feita com diferentes abordagens, que é pensar justamente que um bebê não nasce pronto nem orgânica nem psiquicamente, ou seja, as estruturas não estão decididas na infância, a própria formação cerebral. E a gente sabe que isso depende radicalmente das experiências de vida que a gente tem"

"Há uma etapa importantíssima que é esse momento dos 0 aos 2 anos em que acontece um verdadeiro "big bang" das nossas interconexões neuronais. E isso se dá em função das nossas experiências de vida"

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"O bebê realmente, para estruturar, precisa que os acontecimentos que chegam até ele na sua sensorialidade espontânea, como os sabores da comida, a temperatura, o susto que a gente leva, o que a gente vê na paisagem, sejam cruzados com um outro que fale com esse bebê e que vai ajudando-o a representar na palavra o que afeta no seu corpo"

"A exclusão com os "mais pequenos" acontece por uma falta de visibilidade, pelo fato de que eles são deixados à espera, às vezes com pais preocupados, mas que não lhes dão ouvidos, até porque os pequenos estão ainda articulando a fala. Assim os bebês acabam sendo considerados no seu sofrimento somente quando esse sofrimento assume a forma de quadros psicopatológicos muito mais configurados.

Essa é uma realidade que a gente precisa mudar. O que dizer durante a pandemia, porque durante a pandemia apenas se acentuou o individualismo na forma de cuidar"

"A virtualidade produz todo uma outra forma da circulação do olhar. O olhar circula de uma outra maneira nesses aparelhos eletrônicos, por exemplo. A voz circula de outra maneira porque, por exemplo, a gente tem que fechar o microfone de um para não atrapalhar a fala do outro, mas [nisso] a gente perde o riso do outro, o pigarrear do outro, o corpo [da cintura para baixo] não aparece. Tudo isso para o atendimento de uma criança é ainda mais importante, porque na infância a possibilidade de traduzir em palavras aquilo que me afeta é menor, o bebê conta muito mais com a presença do corpo, do ato de brincar".

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