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Opinião|O que significa o vexame que esculhambou a Bayer e a AlmapBBDO em Cannes

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Atualização:

Cena do filme "Muito Loucos" (1990), em que um publicitário (Dudley Moore, à esquerda) é internado como louco porque decide dizer só a verdade em suas peças Foto: Estadão

Na semana passada, a AlmapBBDO e a Bayer passaram pelo ridículo de devolver dois Leões de Bronze do Festival Internacional de Criatividade de Cannes. A situação vexatória representa muito mais que a perda de importantes prêmios: ela escancara como o mercado publicitário se acha um fim em si mesmo e como muitas empresas estão completamente dissociadas do mundo em que vivem.

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Para quem não sabe do que trata o caso, a agência se viu obrigada a abrir mão das estatuetas porque as três peças premiadas, feitas para a Aspirina (que podem ser vistas ao longo desse artigo), foram pesadamente criticadas pelo público por terem um caráter machista e incentivar a gravação não consentida de sexo. Afinal, bastaria tomar um desses comprimidos para se livrar da dor de cabeça que o vazamento de tais registros causaria à vítima. Isso em um momento em que a sociedade brasileira está engajada em torno de discussões que condenam práticas como essa!


Vídeo relacionado:

http://youtu.be/RxTvH-WUMQU

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Para piorar, as peças foram criadas exclusivamente para ganhar prêmios, e não para vender o produto! Tanto que a veiculação foi paga pela AlmapBBDO, e não pela Bayer, apenas para poder atender aos critérios mínimos e concorrer ao prêmio. Diga-se de passagem, esse tipo de "peça fantasma" é proibida em Cannes.

 Foto: Estadão

Em sua defesa, a agência disse em comunicado que "pode ter havido interpretações diferentes da mensagem que a peça queria passar" e que ela "repudia a prática de filmagem não consensual e qualquer espécie de violência ou invasão de privacidade".

De fato, pode ter havido.

 Foto: Estadão

Estou confuso: se realmente repudiam isso, como essas peças puderam ser criadas? Qual seria a interpretação legítima na cabeça do criativo responsável? É uma pena que, mesmo depois dessa mancada mastodôntica, a AlmapBBDO não teve a sensibilidade de assumi-la e pedir desculpas sinceras ao público e ao mercado. Ficou tudo naquela zona morna de "foi tudo uma piada genial, que vocês não entenderam nada, seus chatos".

Isso guarda um outro componente perverso da publicidade brasileira. Ninguém duvida que ela é uma das melhores do mundo, mas os incontáveis prêmios inflaram de tal maneira os egos de muitos profissionais, que se acham no direito de fazer o que bem entenderem. Consideram-se artistas, quando, na verdade, não passam de operários de uma indústria cuja existência destina-se a vender produtos alheios. Por conta disso, se dão o direito de infringir as regras, para inscrever em um concurso uma peça que eles acham uma "grande sacada", mas que não seria paga pelo anunciante e que ofenderia o consumidor.

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 Foto: Estadão

Mas nada disso importa. O que vale é valorizar a sua "arte", mesmo que ela seja criada sobre todo tipo de estereótipo e apelações. Um bom exemplo são as propagandas nacionais de cerveja, fortemente vinculadas à exposição de mulheres-objeto voluptuosas em trajes mínimos.

Como se cerveja servisse para pegar mulher. Ou como se mulher não bebesse cerveja.

 

Falta de empatia

A Bayer também saiu chamuscada do episódio. Diante da repercussão na imprensa internacional do caso, um porta-voz resumiu-se a dizer que "a veiculação foi de responsabilidade da agência, a fim de atender os requisitos para submissão em Cannes". E concluiu: "a Bayer solicitou à AlmapBBDO a descontinuidade da campanha bem como a divulgação, promoção subsequente ou adicional do anúncio".

Ótima maneira para tirar os holofotes do fato de que a Bayer concordou com todo esse circo desde o princípio.

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Que vergonha, Bayer!

Criada em 1899, a Aspirina sobreviveu a dramáticas mudanças sociais em todo mundo, desde o fim da Era Vitoriana até o Brexit. E uma dela é que as empresas, cada vez mais, devem ter uma postura mais consciente com as sociedades em que atuam, e devem ser mais empáticas com seu público.

Com o surgimento de leis de defesa do consumidor e o fortalecimento dos canais de comunicação, especialmente as mídias sociais, as empresas não podem mais simplesmente se ver no papel de produtores de bens que devem ser consumidos pela população. Hoje elas são chamadas a participar do debate público, a serem sustentáveis e a conversar com as pessoas, sejam seus clientes ou não.

Quanto maior a empresa, mais envolvida ela está com tudo isso. E poucas empresas na história chegaram ao tamanho da Bayer, uma gigante farmacêutica e química com mais de 150 anos de estrada e 100 mil empregados. Omitir-se em temas de grande repercussão social seria como querer esconder um elefante em uma plantação de morangos pintando as suas unhas de vermelho.

Nesse episódio, a situação da indústria é ainda pior, pois os anúncios eram de um de seus principais produtos. Não interessa se a peça era só para ganhar prêmios e se a veiculação foi paga pela AlmapBBDO: a empresa se prestou ao papelão de empenhar a marca Aspirina a peças moralmente questionáveis.

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Há algo de bom a se tirar dessa absurda patacoada. Ficou mais um exemplo de que as empresas precisam estar atentas aos movimentos da sociedade e demonstrar empatia com as pessoas. E isso não significa ter discursos bonitos. Tampouco respostas burocráticas resolvem. Empatia significa verdadeira e genuinamente demonstrar interesse pelos sonhos, pelas necessidades e pelas dores do outro. É vir a público, de peito aberto, e dizer tanto "deixe-me ajudá-lo" quanto "desculpe, errei, mas vou corrigir isso".

E vendo por uma lógica capitalista, executivos das empresas devem parar de pensar que isso é "custo", pois, a longo prazo, todo esse investimento no bem-estar social se reverte em ganhos maiores, proporcionados por clientes conscientemente engajados em torno de causas em comum, que podem até se tornar embaixadores da sua marca.

Do ponto de vista da publicidade, fica claro que as agências deveriam tomar vergonha na cara e coibir fortemente esses condenáveis anúncios social e moralmente deploráveis. E parar de achar que a publicidade vende a si mesma, ao invés de vender o produto do anunciante.

Enquanto isso, a AlmapBBDO e a Bayer ainda devem desculpas decentes ao mundo.


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Opinião por Paulo Silvestre

É jornalista, consultor e palestrante de customer experience, mídia, cultura e transformação digital. É professor da Universidade Mackenzie e da PUC–SP, e articulista do Estadão. Foi executivo na AOL, Editora Abril, Estadão, Saraiva e Samsung. Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP, é LinkedIn Top Voice desde 2016.

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